Mbaye, O Mucubal

Mbaye, o Mucubal

Num dia que despontou mais uma madrugada feliz na província do Namibe, um pai foi para uma das imensas planícies da região Mucubal para ver o sol nascer e, serenamente, contemplou a imensidão da sua terra com um orgulho especial. Nessa manhã, ele trazia nos braços o seu filho que nascera na última luz do dia anterior.

-Filho, a mãe que te nasceu pediu-me para dizer em voz alta ao mundo quem és e aquilo que é teu.

O sol despontava esplendoroso e a vida agitava-se pelos pequenos pastos que se viam à distância. Os sons da vida preenchiam o coração dos dois.

A Terra recebia em glória mais um filho da tribo Herero.

-Filho – disse o pai - A tua mãe contou-me que quando nasceste, depois do teu primeiro choro de ar, que sorriste para ela. Ela olhou para as mulheres que a amparavam para te fazer nascer e confirmou que a reconheceste. Ela disse-me:-”Pai, este filho é teu. É um guerreiro e vai ter uma vida feliz.”

O pai continuou a falar com o filho em voz alta: - A tua mãe lavou-te com o sebo de boi para te proteger das doenças e abraçou-te contra o peito fértil para que soubesses que estavas seguro, que estavas onde tinhas de estar. O teu lugar.

O pai ergueu-o a favor do sol que nascia.

-Filho, a tua mãe cortou o cordão que te ligava a ela e enterrou-o no chão da casa onde nasceste. Cobriu-o com as fezes secas dos bois que trouxeram a nossa riqueza para garantir que irás continuar a tradição. Serás sempre filho e dono desta terra.

-Filho, o primeiro homem que te tocou fui eu, teu pai, honrando os nossos antepassados, para te dar os meus braços e as minhas pernas, o meu sangue, a minha força.

-Filho, dou-te tudo o que é meu e é muito. És um Herero.

-Hoje vou dar-te o nome ao qual responderás durante todo o teu caminho. És Mbaye, o Mucubal.

-Hoje vais comigo iniciar a tua vida que é de todos. Vou ensinar-te a viver, a dividir, respeitar as tradições, cuidar do gado e de todos os animais que honram a nossa vida com a sua morte.

-Vou dar dois bois e duas vacas a um vizinho, mas são teus. Serão a tua garantia para quando casares. Todos os animais que nascerem deles serão teus. Vou-te ensinar que caçar é tarefa dos pobres e peço-te que me prometas que jamais o farás. Vou-te ensinar a contar para saberes sempre a riqueza que tens para dividir. Um homem só tem o que tem, fruto do seu trabalho, para dividir. A tua riqueza será tão grande quanto grande será o teu coração.

-Hoje divido-te com a família, com os amigos, com o mundo, Mbaye. Benvindo à tua casa e agradeço-te por dividires a tua vida comigo.

O homem aninhou o frágil filho nos braços e voltou para a sua casa, mas ele disse em voz baixa ao filho:- “Onjuo”.

Sabia que o tinha de apresentar a Deus que é só Um e aos antepassados que são muitos.

-Filho – disse o pai a chegar ao “Okurowo”, sítio central e de adoração do fogo divino e da memória dos que já não estão mais – Este é o fogo que nos acompanha por todo o mundo que é nosso. Vais levá-lo e preservá-lo sempre. Este fogo é a única certeza de que a vida existe antes e depois de nós.

-Aqui encontras o meu pai que tem “OmacuinheEpanduhavale”, sim senhor, setenta, setenta anos de idade, mas tem também mais de “Ecuinhy” mulheres. Dez, dez mulheres, sim senhor. Todas férteis.

O ritual de apresentação foi-se prolongando e a manhã estava a acabar.

O menino dormia agora nos braços da mãe e era observado por todos os familiares.

O som das bombas e o roncar dos carros de combate sul-africanos ouviam-se ao longe. A artilharia das FAPLA respondia com fulgor.

O céu cobria-se de pólvora, pó e medo. Os homens agitaram-se e chamaram todos para prepararem a sua defesa. O pai foi chamado de chefe e levantou-se num gesto de despedida.

A mãe perguntou: -Pai, falaste disto ao teu filho?

O pai respondeu:-Não. É a guerra dos brancos e dos negros. Nada temos com a desgraça alheia. Nunca teremos. Nós somos Herero, Mucubais, Himba, Dimba.

-Mulher, fala de mim ao Mbaye, nosso filho, nosso príncipe. Tu, minha rainha, lembra-te de mim.

Nesse dia que aquele Rei Herero voltou morto e estropiado, os homens e as mulheres de toda a região prestaram homenagem ao seu mais destacado líder e, conforme era sua vontade e tradição, mataram “Omacuinhe a Tanu”, cinquenta, sim senhor, cinquenta cabeças de bois para que rodeassem a sua sepultura e garantissem que os maus espíritos jamais o acordariam do descanso merecido.

Foi esse o dia, de uma manhã esplendorosa, o primeiro e o último que Mbaye ouviu a voz do seu pai, a voz dos Hereros, Mucubais, Himbas e Dimbas naquelas terras maravilhosas do Sul de Angola.

Victor Amorim Guerra

Manuel Correia
Enviado por Manuel Correia em 29/04/2016
Código do texto: T5620274
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