Fazenda

O homem foi viajar a negócios e confiou a administração da fazenda aos porcos, pois eram os animais mais inteligentes. Os porcos então reuniram-se, e acharam por bem dar voz aos demais bichos sobre as questões da condução da propriedade, pois consideraram que aquela seria a coisa mais justa a fazer. Como cuidar da propriedade era uma responsabilidade complexa, resolveram reunir-se com regularidade para discutir alguns assuntos tocantes às tarefas.

Na primeira das reuniões, enquanto faziam a apresentação da pauta do dia, todos se deram conta de que um pequenino casal desconhecido estava ali também. Curiosos, os animais pediram a eles que se apresentassem. Acanhados, os dois bichinhos, que estavam num estado deplorável, puseram-se à frente e tomaram a palavra:

- Amigos e amigas, pedimos perdão por interromper suas atividades. Somos os ratos, e vocês não nos conhecem, pois temos de nos esconder do fazendeiro, que nos odeia. Enfrentamos uma vida dura, sendo relegados a caminhar nas sombras e na noite, pelos esgotos e pelos canos. Temos que comer o que sobra e o que não presta, e frequentemente isso está envenenado. Precisamos fugir sempre, pois basta a mínima suspeita de nossa presença para que sejamos caçados à morte. O lixo é o nosso lugar, e esta situação lamuriosa em que vocês nos veem é praxe. Gostaríamos apenas de pedir que permitam que desfrutemos da sua presença durante este período de administração animal da fazenda, pois também fazemos parte desta equipe, embora nosso papel seja malquisto pelo dono.

Perplexos, os animais acompanharam emudecidos a apresentação daquele triste casal, cuja realidade desconheciam. Após o final do discurso, os ratos voltaram tímidos e trêmulos ao seu lugar na assembleia, que principiou imediatamente a debater:

- Amigos, parece que temos aqui uma situação tremendamente urgente. Como devemos agir? - Questionaram os porcos, instigando o diálogo.

- Nós estamos comovidas com este relato. Não sabíamos como o fazendeiro era injusto com uma parte de nossos irmãos. Isso é horrível. - Baliram as ovelhas, visivelmente emocionadas.

- Estes tipinhos não me enganam. Eles não me parecem confiáveis. - Miou o gato, sem tirar os faiscantes olhos de cima da dupla de roedores.

- Concordo com o gato. E acrescento ainda que o fazendeiro não faria nada que não fosse necessário para o bem da fazenda. - Latiu a cadela, confiante em seu dono.

- Vocês não têm coração? Não acabaram de ver com seus olhos, e ouvir com seus ouvidos? Olhem a situação destes infelizes! Devemos ser cruéis como o fazendeiro? - Zurraram os asnos, irritados.

- Concordamos! Concordamos! Concordamos! - Grasnaram os gansos, em confusa gritaria.

Logo o vozerio era geral, e os porcos tiveram que grunhir alto para botar ordem no celeiro. Uma votação foi realizada e a maioria aprovou a presença dos ratos em seu meio; e que fossem deixados em paz para viverem sua vida. Com exceção do gato e da cadela, que votaram contra, e dos cavalos, que chegaram atrasados do trabalho e se abstiveram da reunião e votação, os demais animais festejaram a decisão, e logo todos retomaram a pauta do dia.

***

Nas reuniões seguintes os ratos estavam sempre presentes, e como se reproduziam com facilidade, seu número aumentava mais e mais, dando-lhes crescente participação nas votações e deliberações. Seus aspectos melhoraram, tornando-se mais saudáveis, fortes e grandes, e sempre faziam questão de envolverem-se nos assuntos da administração coletiva da fazenda. Paralelo a isso, as coisas começavam a piorar por lá: a ração desaparecia, a sujeira aumentava e o barulho dos ratos incomodava o sono de todos. Numa dada noite, um dos ratos foi flagrado roubando ovos, e uma assembleia extraordinária fora convocada imediatamente:

- Amigos, agradecemos muito a presença de vocês a esta hora. Como sabido por muitos de nós, um dos ratos foi pego agora há pouco roubando ovos das galinhas e, após minucioso interrogatório conduzido pela cadela, ele confessou participação no desaparecimento da ração e em outros problemas que vêm acontecendo nos últimos tempos. As reclamações são tantas que acreditamos que é preciso debater isso urgentemente. - Grunhiram os porcos, e não tardaram as manifestações:

- Esses cretinos só trazem o caos! Precisamos acabar com essa praga! - Miou alto o gato, elevando o vozerio no local.

- O fazendeiro tinha razão! O tempo todo ele tinha razão! Eles são umas pragas! - Uivou a cachorra.

- Pragas! Pragas! Pragas! - Grasnavam os gansos.

- Calada! Você diz isso porque repousa no conforto da sede da fazenda! Os ratos só agem desta forma porque passaram anos sendo discriminados, e sua condição de párias não lhes deu outra alternativa… Tolerância, bichos. Tolerância! - Zurraram os asnos.

- Tolerar! Tolerar! Tolerar! - Contradiziam-se os gansos.

- Não aguentamos mais, nós não dormimos e agora roubam nossos ovos! Alguém tem que fazer alguma coisa! - Cacarejavam as galinhas, em lágrimas.

- Deixe que eu faço! - Miou o gato, e avançou feroz para cima do rato que fora detido. Este guinchou desesperado, e logo o celeiro estava em polvorosa. Não tardou para que os outros ratos viessem em seu socorro, e a confusão foi geral. Após longa briga, com muitos feridos e alguns mortos, os ratos tomaram o controle das coisas. A ratazana mãe destituiu a autoridade dos porcos e demais bichos: uns foram presos, outros foram condenados à pena capital, e os restantes foram obrigados a continuar trabalhando, proibidos de se manifestar. As assembleias foram dissolvidas, e o celeiro e a sede da fazenda foram confiscados pelos ratos.

Porém, naquela tarde, o fazendeiro retornou, deparando-se com o caos em sua propriedade. Sem demora, contratou um exterminador de pragas e, com muito custo, eliminou os ratos. Em seguida fez um balanço das perdas de animais e da produção, e teve que amargar alguns meses no vermelho para a recuperação dos prejuízos. Porém, após muito trabalho e dedicação, conseguiu endireitar o rumo da fazenda.

O trauma marcou forte a memória dos bichos, que logo traduziram os acontecimentos na forma de histórias, tradições e mitos. Mas, conforme o tempo passava e as gerações se sucediam, o ocorrido foi ficando cada vez mais distante e perdido na cabeça de uns poucos mais velhos. Hoje são pouquíssimos os que se recordam, e menos ainda os que acreditam. E o fazendeiro está se preparando para uma nova viagem.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 03/07/2018
Reeditado em 03/07/2018
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