O Leão Marinho

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1.

A minha mãe deixou-me só.

Desceu ao mar, fez-se às ondas, mergulhou nas águas geladas, nadou, nadou, procurou alimento para me trazer.

– Vai ser por pouco tempo, muito pouco – disse. Aguenta-te! Vais ter que ser o meu Leão!

Dali a pouco, acrescentou:

– Temos que te fazer crescer aquele grande narigão de trombone!... Vá, meu pequeno leão dos mares! Aguenta-te, que eu já volto!

Deu meia volta, preparou-se para sair novamente, e deixou-me no esconderijo, longe da praia e da vizinhança, num intervalo entre as rochas de um meandro por entre as quais escorre a espuma da monumental rebentação.

E eu, tão pequeno... Indefeso. Muito escurinho contra a areia húmida, muito brilhante... Talvez parecido com uma daquelas pequenas rochas inundadas de espuma... dizia ela “Um bom disfarce, isso protege-te”!...

...Mas na verdade, eu era muito mais parecido com um pequeno pom-pom daqueles que as meninas penduram ao pescoço do que com o futuro leão-marinho que ela queria que eu viesse a ser...

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2.

Viram-me as gaivotas –

Todas elas! Viram-me! Todas as aves que desciam à praia! As de muito pequeno porte, essas que se contentam em depenicar na pele dos leões adultos, catando parasitas. Ou limpando-lhes as aparas que lhes escorrem das enormes bocas.

E todas as outras... Viram-me todas as aves das redondezas...

As gaivotas brancas, muito brancas, apenas com uma ou outra pena acinzentada que as torna tão atraentes, com seu belo e volumoso bico amarelo, enérgico e duro. Foram elas quem deu o alarme.

Primeiro, uma; depois, várias; depois, muitas. Em silêncio. Judiaram com o meu pequeno corpo, ainda informe... Viraram-me sobre as rochas, arrastaram-me para a areia... Curiosas, reviraram-me sobre o cascalho... em silêncio. Sempre em silêncio, muito brancas e alvas, muito puras, meticulosas, intocáveis – de barriga para cima, de lado, de borco, sem descanso...

Os meus gemidos, chiados, miados, latidos, não atingiam os ouvidos ausentes da minha mãe.

...devia estar toda entregue à sua missão de grande caçadora, em busca de cardume que lhe fornecesse o pâté para a minha ração...

Cansadas da diversão, as gaivotas começaram a crocitar...

A praia, a rebentação, as ondas – tudo tão perto. E tudo tão indiferente. Tão longe como a minha mãe ausente na sua missão de me cuidar...

À medida que os meus chamados enfraqueciam, iam elas ficando cada vez mais excitadas, as malditas, as gaivotas, mais nervosas, mais frenéticas.

Foi então que apareceram aqueles passarocos pretos. Ou castanhos... não cheguei a perceber... de bico adunco, semelhantes a pequenas águias incansáveis.

As gaivotas tinham-lhes preparado o banquete, enquanto de longe eles se tinham mantido confiantes, pacientemente, à espera...

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3.

Não sei se a minha mãe voltou... ou não... nunca mais a vi... ou se chorou ou não...

Ou se ainda se lembra de mim...

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© Myriam Jubilot de Carvalho

2005

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 04/10/2020
Reeditado em 04/10/2020
Código do texto: T7079336
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