A MENINA E O GIRASOL

Já passava da meia noite quando guardas colocavam algumas pessoas que insistiam em ficar na rua para suas casas. O toque de recolher deveria ser obedecido. As luzes âmbar ofuscavam os pedestres que passavam pelas vielas sujas e enlameadas na tentativa de se esconder e ficar mais um pouco na rua. Reconhecer alguém era impossível, mesmo que batessem de frente. Não estava havendo punições neste dia, por que na manhã seguinte a princesa seria coroada e mesmo que alguém se tornasse pedra, a coroação seria com certeza um grande evento.

A jovem princesa das sombras, sempre sonhara com a luz, possivelmente depois deste dia especial, quem sabe poderia ver uma cor ao menos, nem que fosse das luzes dos postes. Ela ficava trancada de um canto para o outro, a espera de atingir a idade de ser feliz e quem sabe não virar pedra como a mãe e o pai que foram sucumbidos pelo infortúnio do lugar. A cidade tinha uma maldição, nada nascia ali, e nada que fosse dourado ou amarelo poderia ser visto diretamente, apenas uma vez em muito tempo a rainha por milésimos de segundos conseguiu tocar uma pétala brilhante, mas foi engolida pela cidade e transformada em pedra, mesmo ainda viva debaixo do envolto de rochas, em seu duro coração só pairava o medo.

A esperança de muitos estava na princesa. Se a mãe conseguiu tal façanha a menina deveria quebrar com isso de uma vez por todas. Não era assim tão fácil. A menina era inconsequente, comum na sua idade, e há quem diga que ela não teria paciência de esperar. A menina vivia na janela a observar os labirintos de pedras e jardins de quartzos que ficava fora do castelo. As arvores apenas verdes, balançavam suas folhas com a mansidão da saudade de suas flores, tudo morria junto com o sol, que tinha sempre seu pôr atrapalhado por nuvens negras.

A noite caia feroz no silêncio, os pobres fachos de luzes clareavam pouco os becos onde alguns jovens desafiavam as sombras. De fato eram eles que alimentava a cidade, que precisava se metamorfosear em gente para continuar viva, pessoas fúteis que se agarravam aos tropeços dos vagabundos. A cidade nunca dormia, e o vento fino e áspero que corria trazia um cheiro repetitivo e estranho. Não havia nostalgia, não havia lembranças, as pessoas se acostumaram a viver como parte disso.

Nesse momento a princesa deitada, comtemplava a imagem de uma bela flor de cor branca pintada ao teto numa espécie de vitral. Era um majestoso girassol, com suas pétalas desbotadas por conta da cor proibida, mas ainda era uma bela e majestosa flor, como uma imensa margarida que ela via nos livros. Levantou e caminhou até a janela pela estrada prata feita pelo reflexo da lua, e lá de cima olhou embaixo, no labirinto de mármore, um jovem jardineiro de quartzo.

O rapaz montava pedra sobre pedra, para que no dia seguinte o branco se misturasse as trepadeiras verdes e desse pelo menos um aspecto multicolorido. Ele desenhava no chão com os grandes seixos os planetas, Marte com quartzo róseo e Saturno com seus anéis de vidro. Tudo para que a princesa contemplasse antes do sono a beleza que existia além das estátuas mortas e da falta de cor. Antes do sol se pôr, o jardineiro bagunçava tudo que fez, para que na outra noite pudesse criar coisas novas para a bela da janela. E passava o resto do seu tempo contemplando as pequenas coisas, as folhas que queria ser outono ou os galhos que queria ser menos cinza. Mas evidentemente em seu íntimo pulsava uma vontade de ver a cor do sol, ou de poder dá o sol as pedras da cidade. Sempre que amanhecia alguém gritava que alguém tinha sido sucumbido, dessa vez foi o filho de dona Quitéria, um menino sem vontade e de poucas cores.

A princesa sempre vinha fazer o ritual de despedida, tocava o coração de pedra e dava lhe uma nova função, fosse ornamento de praça ou poleiro para os pombos. O jardineiro estava ali a observar a princesa que derramava uma lágrima a saber que no tempo certo seria também ela uma parte pequena daquilo. O jardineiro olhava profundamente nos olhos de fogo dela e apontava para que ela visse o sol que começava a se pôs, em seu tom claro, os olhos delas incendiava. – Não queira ver a cor, deseje sê-la – Balbuciou para que ela lesse em seus lábios - mas já era tarde e o céu já se escurecia por completo. Ela sorriu, a primeira vez em muito tempo, a lua veio cheia nesse dia.

A cidade estava ficando com poucos habitantes e as pessoas que ouviam as histórias passavam distante do lugar. Ninguém sabe ao certo como foi que isso se sucedeu, só se sabe que o esplendor de cores foi perdido e poucas cores eram possíveis ver, e, quem tentasse reter o amarelo seria sucumbido pelo lugar tornando parte dela. Mas havia uma profecia, que todos voltaria a ser o que eram caso houvesse o encontro dos três sóis. As pessoas esperaram por anos o aparecimento de outro sol ou de um eclipse e nada, então aceitaram a condição de abolir as cores, e a cidade sempre consumiria um ser em troca de outro.

A princesa deitada na cama contemplava o girassol branco, e imaginava consigo mesma que nunca na vida havia visto uma flor de verdade. A lua cheia refletia nos vitrais um degradê diferente e as pétalas brancas pareciam mais um arco-íris sem sentido. O barulho de pedras lá fora a chamou a atenção, era o insistente jardineiro que tentava em vão mostrar a ela o que havia no espaço. Ele levantou a mão, ela viu uma pétala amarela voar, se assustou por um momento arregalando os olhos e correndo de volta a cama, ficou se perguntando se realmente havia acontecido.

Na manhã seguinte três novas partes da cidade haviam aparecido, e não era estátuas, dessa vez, era um pequeno muro, um banco, e um vaso. Deu se o trabalho de fazer a contagem de cada um em cada casa, como já não havia tantos, foi rápido, os três filhos de Irineu, até o mais burro, que apesar de tão burro, tinha bom coração e sabia que não se pode mexer com amarelo. A princesa lembrou do jardineiro. – A culpa é dele – Ela gritou ao povoado – Eu o vi segurando cor ontem à noite – achem no e preda-o.

O verde das arvores ficou mais tristes do que antes, suas flores que já nasciam mortas, caiam antes mesmo de se pensar em vento. O castelo se tornou mais triste, e as pedras no chão não tinha forma alguma. O labirinto perdeu a graça e os planetas foram apagados.

Na prisão a princesa foi falar com o jardineiro e tirar satisfação pela ausência de formas. Ele estava sentado cabisbaixo tentando entender os motivos que o fizeram chegar ali. Ela olha para ele, pede que se levante, e quando isso acontece ambos contemplam o amarelidão das mãos do rapaz, e por incrível que pareça não surtiu efeito nenhum na jovem. Porque você é assim? – Ela perguntou – Porque eu não seria? – Disse ele – Ou somos partes de concreto ou somos parte de pétalas. Hoje o verde se vestirá de amarelo. Arrumei um jeito de quebrar a maldição - falou ele categórico – Achei os sóis que vão se encontrar, mas você tem que olhar e querer ser o sol, querer ser a cor. Falou em tom desesperado – Tolice – respondeu ela soltando a mão dele – Não existe estes sóis – baixou a cabeça um momento – Existe nossa solidão e nossa maldição é ver as cores poucas e ser do tamanho do lugar que estamos. Somos parte dele, somos isso, não acredito mais no sol.

Já era quatro da tarde quando mil flores amarelas se abriam e se apontavam em direção ao esplendoroso poente, que por incrível que pareça permanecia na sua cor natural. Ele espalhou girassóis pela cidade para que ela pudesse ver o mundo, mas ela se punha chorosa na cama contemplando a flor de pétalas brancas. Naquele momento ela ainda permanecia presa as casualidades do destino, as flores em fim desabrocharam com um esplendoroso amarelo que iluminou toda a cidade se chocando com o brilho reluzente que vinha do horizonte, mas faltava um terceiro sol. Ele na prisão tentava atravessar as grades. - Se ao menos ela olhasse para a janela – Disse tristemente.

Todos já estavam imóveis sucumbidos a cidade maldita que transformava todos em pedra. - Vai meu amor, olha o girassol da janela.

Ela deitada em sua cama, percebia nos vitrais um aspecto diferente, o amarelo trasbordava sobre as pétalas brancas amarelando-as, os olhos da princesa pareciam em chamas, sua mão brilhava amarela, ela era o terceiro sol. A cada nova flor que desabrochava as estátuas se desmanchavam em pó e tornava gente, gente assento de praça, gente poleiro de pombo, gente da rua, gente de todo o tipo. O jardineiro conseguiu sair de sua prisão e se compor de uma cor única, a cor de sempre. A princesa só tinha que olhar os girassóis, olha na janela e contemplar o brilho e desejar ser ela a cor, ver a flor que nunca viu. O tempo estava passando, o sol estava morrendo e os girassóis chorando, quanto mais a luz baixava, as pessoas voltavam a pedra novamente, e o pó se reerguia nas esculturas mortas. A princesa não se levantou para ser seu próprio sol.

Antes que o jardineiro morresse, conseguiu se plantar com o olhar para a janela, queria ver sua amada uma última vez, ele já não era amarelo, nem humano, somente o mesmo. Ela no quarto tornou-se uma escultura triste, anexada a uma das colunas que sustentava o cômodo, e finalmente um pó fino que se espalhou por cada canto onde agora a cor âmbar clareava. Seu medo a tornou comum, diluída nos próprios aposentos de si. Ele não a viu na janela mas lembrou que espalhou girassóis pela cidade para que ela visse a majestosa flor, mas ela não viu, já havia se tornado a cidade muito antes.

Silvestre Cantalice

Série de fotografias baseadas no conto: https://www.deviantart.com/silvestrefilho/art/The-sad-sunflower-series-1-5-857230757