Uma viagem no tempo

Como numa espécie de transe fechei meus olhos e viajei mais de sessenta anos atrás, à procura de mim mesmo.

E lá estava eu, tal como me deixei: com idade de mais ou menos cinco anos; mal-vestido; cabelos lisos, castanhos e despenteados; chupeta na boca e pés descalços; olhar sereno e acanhado sorrindo para mim.

Aquele menino cheio de espanto parecia querer não me reconhecer e por um instante ficou fitando-me enquanto permanecia desconfiado com a minha inesperada presença.

Então, pausadamente lhe murmurei:

- Calma garoto! Fique calmo! Nós somos um só. Eu sou você e você é eu. Somos a mesma pessoa. Olhe bem para mim e vê se me reconhece.

Espantado, mais uma vez ele olhou dentro dos meus olhos e sorriu. Nesse instante meu semblante sexagenário se abriu e eu também lhe sorri.

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As pessoas que por mim passavam me olhavam achando-me esquisito, mas, como ninguém entende dos pensamentos humanos, eu prossegui com minha visita ao passado. Passado que trafega nos meus sonhos, até mesmo acordado.

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- Sabe quanto tempo faz que não nos vemos? Tem mais de sessenta anos.

Você imaginava que ficaria assim? Veja como está hoje! Ouça-me, tenho idade para ser seu avô. Que acha você se fosse meu neto?

Olhei minucioso para todo seu corpo, que era lindo. Sua pele morena brilhava sob o Sol e suas mãozinhas gordas se mexiam agitadas. Seus cabelos, iluminados ao Sol, tinham luz, e sua boca, de lábios finos, se abria e se fechava envolvida num sorriso angelical.

Tive a impressão de ouvi-lo me perguntar:

- Por onde você andou e porque você me deixou?

Mas, mesmo sem sua nítida pergunta, lhe respondi que andei no tempo: o tempo que transforma os vivos, que maltrata os corpos, que nos faz jovens e nos envelhece.

E num ato involuntário estendi-lhe a mão achando que seria tocada, mas alguém logo me apareceu perguntando:

- Vô, com quem estava falando?

Recompondo a consciência, lhe respondi:

- Com um lindo menino que conheci faz muito tempo, e que, tal como você poderia ser meu neto.

- Mas... quem era esse menino, vô? – confusa, minha neta indagou e eu lhe respondi:

- Aquele menino sou eu.

A menina balançou a cabeça como que dizendo nada entender. E não entendeu. Mas com o tempo saberá que também já fui criança tão bela e pura quanto as outras e, talvez, possa um dia fazer como eu: embarcar na nave da saudade e ir se encontrar com a criança que deixou no tempo passado.

Memórias do autor

São Paulo, 18 de jan/2008.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 18/01/2008
Reeditado em 15/09/2023
Código do texto: T821964
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