Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas - trechos escolhidos

Estes são os trechos de que mais gostei nesta obra.

Aline Malanovicz.

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PIRSIG, Robert.

Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas.

13.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1984.

PRIMEIRA PARTE

p.12 O mais importante é aprender a não se perder.

p.13 Eu gostaria mesmo era de usar o tempo que temos para falar sobre umas coisas que me ocorreram. Andamos sempre correndo tanto que não temos muitas oportunidades para conversar. Daí aquela eterna superficialidade do cotidiano, aquela monotonia que faz com que, anos mais tarde, se fique imaginando o que foi feito do tempo, chateados porque tudo já passou. Como temos algum tempo agora, e sabemos disso, eu gostaria de me aprofundar em aspectos que me parecem importantes.

p.13-14 “Quais são as novidades?” é a eterna pergunta, interessante e abrangente; mas, se só perguntarmos isso, obteremos uma série interminável de banali¬dades e modismos, o lodo do futuro. Eu prefiro me preocupar em perguntar: “o que é melhor?” É um questionamento mais profundo do que abrangente, cujas respostas tendem a lançar o lodo correnteza abaixo.

p.26 Eu lhe disse que o desconforto físico é importante apenas quando estamos indispostos. Aí a gente põe a culpa em qualquer coisa que incomode. Mas se a pessoa estiver disposta, o desconforto não importa muito.

p.39 O homem de hoje também tem seus fantasmas e espíritos, não é?

- E quais são?

- Bom, as leis da física e da lógica... Os sistemas numéricos... O princípio de substituição algébrica. São os nossos fantasmas. Só que a gente tem uma fé tão grande neles, que eles parecem reais.

p.40 Ficamos derrubando os fantasmas dos outros, dando uma de arrogantes e presunçosos, mas somos tão ignorantes, primitivos e supersticiosos quanto eles.

p.41 A lógica está na mente. Os números são produtos puramente mentais. Eu não me perturbo quando os cientistas dizem que os fantasmas existem apenas na nossa imaginação. É esse apenas que me intriga. A ciência também reside apenas nas nossas mentes, só que isso não a transforma numa coisa prejudicial. O mesmo acontece com os fantasmas.

p.51 Só que é um beco sem saída. Se a gente disser a um mal-agradecido que ele é ingrato, só vai lhe dar um nome, não vai resolver nada.

p.59 Cresceu em seu lugar o velho sentimento de que já falei, uma sensação de que há algo maior por trás disso tudo. Às vezes, investigando pequenas incoerências, chega-se a grandes descobertas. Eu sentia que o problema era muito complexo para que eu o abordasse sem mais.

p.85 um fantasma que se denomina racionalidade, mas cuja aparência é de incoerência e falta de significado, fazendo com que a mais normal das ações cotidianas pareça meio despropositada, devido à sua total irrelevância em relação ao restante das coisas. Esse é o fantasma dos pressupostos normais de cada dia, que declaram que o objetivo final da vida, que é sobreviver, não pode ser alcançado, mas continua a ser o objetivo final, de qualquer maneira, e assim os grandes homens continuam a curar as doenças para que as pessoas possam viver por mais tempo. Só os loucos questionam isso. A gente vive mais para poder viver mais ainda. Não há outro objetivo. É o que diz o fantasma.

p.86-87 - Eu não sei como essa gente agüenta este calor! - desabafa Sylvia.

- É uma região agreste - retruco, meio irritado. - Eles sabiam que era difícil antes de chegarem, e já estavam preparados para enfrentar o que viesse. Em seguida, acrescento:

- Quem reclama dificulta as coisas para os outros. Essa gente é persistente. Sabe como tocar para a frente.

SEGUNDA PARTE

p.108 Para isso, deve-se possuir um caderno de laboratório. Anota-se tudo formalmente, de modo que a gente saiba onde está, onde estava, para onde está indo e para onde quer ir. No trabalho científico e na eletrônica é necessário fazer isso, porque senão os problemas ficam tão complicados que a gente se perde, se confunde, esquece o que sabe e o que não sabe, e termina desistindo. Na manutenção das motocicletas, as coisas não são tão intrincadas assim, mas quando começa a confusão é melhor não deixá-la aumentar; deve-se proceder de maneira formal e exata. Às vezes, só anotando os problemas, a gente já percebe qual é a sua verdadeira natureza.

p.109 Na primeira parte do método científico formal, que é a exposição do problema, o principal é aprender a afirmar apenas aquilo de que se tem certeza. É muito melhor começar da seguinte forma: “Problema a resolver: por que a motocicleta não funciona?” - que parece idiota, mas está correta - , do que começar assim: “Problema a resolver: por que o sistema elétrico falhou?” - uma vez que não se sabe se o problema é no sistema elétrico. Deve-se anunciar o seguinte: “Problema a resolver: o que há de errado com a motocicleta?”, e depois colocar como cabeçalho da segunda parte: “Hipótese n.° 1: o problema é no sistema elétrico.” Elaboram-se tantas hipóteses quantas for possível, depois criam-se experiências para testar tais hipóteses, com o propósito de verificar quais são as verdadeiras e quais as falsas. // Esta abordagem cuidadosa às perguntas iniciais impede-nos de enveredar por uma rota inteiramente errada, que resultaria em semanas de trabalho desnecessário, ou até em um impasse total. É por isso que as perguntas científicas geralmente parecem idiotas. São feitas para evitar que ocorram erros idiotas, mais tarde.

p.110 Na fase final das conclusões, deve-se cuidar para não enunciar nada além do que a experiência provou.

p.115 No começo, ele achava aquilo divertido. Inventou até uma lei gozadora, no estilo das Leis de Parkinson, segundo a qual “o número de hipóteses racionais que podem explicar qualquer fenômeno dado é infinito.” Agradava-lhe que suas hipóteses jamais se esgotassem.

p.117-118 A razão da atual crise social, segundo ele, é um defeito genético da razão. E até esse defeito ser detectado, as crises continuarão a existir. Nossas atuais modalidades de racionalidade não estão conduzindo a sociedade a um mundo melhor. Estão afastando-a cada vez mais desse mundo ideal. Tais modalidades estão em voga desde o Renascimento, e continuarão a existir enquanto houver necessidade de se conseguir comida, abrigo e roupa. Só que agora, quando para um enorme número de pessoas tais interesses não são mais prioritários, toda aquela estrutura racional, herdada da Antigüidade, já não é mais adequada, e começa a ser encarada como realmente é - emocionalmente falsa, esteticamente inexpressiva e espiritualmente vazia. Hoje em dia as coisas estão nesse pé, e assim vão continuar por muito tempo.

p.123 Ele sentia que instituições como a escola, a igreja, o governo e organizações políticas de toda espécie tendiam a dirigir o pensamento para fins, em vez de para a verdade, para a perpetuação de suas próprias funções e para o controle dos indivíduos subordinados a essas funções. Ele passou a encarar o fracasso como um rompimento feliz, uma fuga casual de uma armadilha preparada para ele, e dali em diante manteve-se prevenido contra as armadilhas das verdades institucionais.

p.142 (...) perguntou por que ele levava a coisa em termos tão pessoais.

- Eu também fico pensando nisso - respondeu Fedro, acrescentando num tom intrigado: - Acho que deve ser porque todo professor tende a dar notas melhores aos alunos que mais se parecem com ele... Se a nossa caligrafia é toda certinha, tendemos a considerar isso mais importante no aluno do que se não for. Se a gente usa palavras rebuscadas, vai gostar dos alunos que também falam assim.

p.148 A escola era o que se podia chamar eufemisticamente de “faculdade de ensino”. Numa faculdade assim, a gente ensina, ensina e ensina, sem tempo para pesquisa, para reflexão, para participação em programas externos. Só ensino, ensino, ensino, até ficar de cabeça cheia, sem ter mais um pingo de criatividade e virar autômato, repetindo as mesmas chatices para bandos intermináveis de alunos inocentes, que não conseguem entender por que somos tão monótonos e perdem o respeito e espalham boatos sobre nós pela comunidade. A gente ensina, ensina, ensina, porque esta é uma maneira bem inteligente de administrar uma faculdade sem gastar muito e dando a impressão de estar proporcionando uma educação genuína.

p.153 A gente nunca se dedica a um assunto em que se sinta perfeitamente seguro. Ninguém fica por aí a gritar feito doido que o sol vai nascer amanhã. Todos sabem que o sol vai nascer. As pessoas que se dedicam fanaticamente a credos políticos e religiosos, ou a outros tipos de dogmas ou objetivos, nunca estão inteiramente seguras desses dogmas.

p.164-165 A ciência lida com pedaços, partes e peças de coisas, tomando a continuidade como pressuposto, e DeWeese trabalha apenas com a continuidade das coisas, tomando como pressuposto os pedaços, as partes e as peças.

p.172 - O problema - prossigo - é que as palestras sempre parecem transmitir verdades definitivas, e as coisas não são sempre assim. As pessoas deviam entender que elas não passam de discursos isolados, localizados no tempo e no espaço, e inseridos num determinado conjunto de circunstâncias. São apenas isso, nada mais. Mas não se pode dizê-lo numa palestra.

TERCEIRA PARTE

p.194 As escolas nos ensinam a imitar. Se a gente não imita o que o professor quer, ganha nota baixa. É claro que na faculdade o processo é mais sofisticado; é necessário imitar o professor de modo a convencê-lo de que não se está fazendo imitação.

p.207 São coisas que vamos percebendo, de um modo ou de outro. Viver somente para alcançar um objetivo futuro é mesquinho.

p.207 Meditar é tão mais interessante do que ver televisão!

p.213 É claro que tendo objetivos egocêntricos a atingir, os garotos do acampamento mostravam muito mais entusiasmo e colaboração. Mas esse tipo de motivação, é, no fundo, prejudicial. Qualquer realização que vise à autoglorificação fatalmente termina em tragédia. Agora estamos pagando o preço. Se tentarmos escalar uma montanha para provar que somos os maiores, quase nunca conseguimos. E se conseguirmos, a vitória será insípida. Para sustentá-la é necessário provarmos nossa força vezes sem conta, de muitas maneiras, e depois muitas outras vezes, impulsionados para sempre por uma falsa imagem, assombrados pelo medo de que tal imagem não seja verdadeira e que alguém descubra isso. Este é um caminho errado.

p.231 um antigo construto lógico conhecido como dilema. O “dilema”, que em grego quer dizer “duas premissas”,

p.235 “Qualidade é o que a gente gosta.” Mudava completamente o significado. (...) “O que a gente gosta é ruim, ou, na melhor das hipóteses, inconseqüente”? O que estaria por trás dessa idéia presunçosa de que o que nos agrada é mau, ou, no mínimo, irrelevante em comparação a outras coisas? Aquilo parecia ser a quintessência da caretice que ele combatia. As criancinhas eram ensinadas a não fazer “apenas o que queriam”, mas... mas o quê?... É claro! O que os outros queriam. Que outros? Os pais, professores, supervisores, policiais, juízes, oficiais, reis, ditadores. Todas as autoridades. Quando a gente é ensinada a desprezar aquilo de que gosta, torna-se um serviçal muito mais obediente - um escravo dócil. Quando se aprende a não fazer “apenas o que a gente gosta”, o Sistema passa a nos adorar. (...) Quando as pessoas dizem: “não faça só o que você quer”, elas não estão apenas exigindo obediência à autoridade. A expressão significa também uma outra coisa. // Essa “outra coisa” desembocava num vasto campo do ideário clássico científico, segundo o qual o gosto das pessoas não importa, porque se compõe de emoções irracionais e íntimas.

p.259 Ou então, para a coisa parecer mais organizada, pode-se dizer: A Arte é a Divindade revelada nas obras humanas.

p.263 Lobachevski parte do pressuposto de que através de um ponto podem passar duas linhas paralelas a uma reta dada. E põe de lado todos os outros axiomas. A partir destas hipóteses, ele deduz uma série de teoremas, nos quais não se encontra nenhuma contradição, e acaba construindo uma geometria de lógica tão impecável quanto a da geometria euclidiana.

p.264 Um alemão chamado Riemann apresentou outro sistema impecável de geometria, que elimina não só o postulado de Euclides, como também o primeiro axioma, segundo o qual apenas uma reta pode passar por dois pontos. Este sistema não apresentava qualquer contradição lógica interna; era apenas incompatível com as geometrias de Euclides e Lobachevski. // Segundo a Teoria da Relatividade, a geometria de Riemann é a que melhor descreve o nosso mundo.

p.280 - Está bem - concordo. Digo-lhe que ficar empacado é o problema mais comum do mundo. Geralmente a cabeça da gente empaca quando está tentando fazer coisas demais ao mesmo tempo. O que se deve fazer é não forçar as palavras a surgirem. Isso só faz emperrar mais a gente. Agora, ele deve separar as coisas, dizendo uma de cada vez. Está tentando, ao mesmo tempo, pensar no que vai dizer e no que deve dizer primeiro, e isso torna as coisas difíceis. Portanto, ele precisa separar essas duas coisas. Aconselho-o a fazer uma lista dos assuntos que quer abordar, sem qualquer ordem estabelecida. Depois, tentaremos organizar as idéias na ordem correta.

p.295

Estamos hoje em dia soterrados por uma expansão descontrolada da coleta de dados nas ciências, porque não há modelo racional que nos permita compreender a criatividade científica. Estamos também soterrados atualmente por uma sofisticação excessiva das artes - arte empobrecida - porque não há bastante assimilação nem penetração da forma subjacente. Nossos artistas não têm conhecimentos científicos, os cientistas não têm conhecimentos artísticos, e tanto uns como outros nem percebem como isso é grave, o que torna a situação não apenas ruim, mas até péssima. Há muito tempo a arte e a tecnologia já deveriam ter-se reunido.

p.296

O modo de perceber o que parece bom, e compreender por que parece bom, e identificar-se com essa qualidade, à medida que o trabalho se desenrola, é cultivar uma paz interior, uma paz de espírito, para que a qualidade transpareça.

p.297

Nós todos já passamos por esses momentos, ao fazermos algo que realmente queremos fazer. (...) Tal envolvimento se produz, no limpa-trilhos da consciência, por uma ausência de qualquer senso de separação entre sujeito e objeto.

p.314

Se você se tem em alta conta, sua capacidade de reconhecer fatos novos se enfraquece. Seu ego isola-o da realidade. Mesmo que os fatos lhe mostrem que está errado, você provavelmente não vai admitir isso. Quando dados falsos o fizerem sentir-se bem, provavelmente você vai acreditar neles.

p.315

Caso você não consiga cultivar a modéstia com facilidade ou singeleza, a saída é fingir que se é modesto do mesmo jeito. Se você simplesmente fingir que não é muito bom, então seu brio aumentará quando os fatos provarem que essa suposição é correta. Desse modo, você poderá prosseguir até que os fatos provem que a suposição é incorreta.

p.315

A ansiedade, a outra cilada para o brio, corresponde aproximadamente ao oposto do egocentrismo. Você tem tanta certeza de que vai fazer tudo errado que fica com medo até de começar. Muitas vezes é esta, e não a “preguiça”, a razão pela qual você acha difícil pegar no trabalho. A cilada da ansiedade, proveniente do excesso de motivação, pode causar toda espécie de erros por preocupação exagerada.

p.316

O tédio é a outra armadilha de que me lembro. Ele é o oposto da ansiedade (...) Quando você se entediar, pare! Vá a um teatro, ligue a televisão. Encerre o expediente. Faça qualquer coisa, menos trabalhar (...) Meu remédio preferido para o tédio é o sono. É muito fácil cair no sono quando a gente se entedia, e muito difícil se entediar depois de uma boa soneca. Outro bom remédio é o café; tenho sempre uma cafeteira ligada enquanto trabalho na moto.

p.334

A filosofia sistemática é grega. Foram os gregos que a inventaram, e, ao fazê-lo, selaram-na para todo o sempre. A afirmativa feita por Whitehead de que toda a filosofia se reduz a “notas de rodapé das obras platônicas” é perfeitamente defensável. As origens da dúvida sobre a autenticidade da Qualidade tinham que estar localizadas em algum ponto da Antigüidade grega.

p.357

Na minha opinião, é assim que o mundo pode melhorar um pouco: as pessoas devem tomar decisões individuais de Qualidade, e pronto.

p.359

Os métodos particulares que empregam provas artificiais do tipo ético e que dizem respeito à boa vontade exigem o conhecimento das emoções, das quais Aristóteles fornece uma lista para quem esqueceu quais são: raiva, desconsideração (que se divide em desprezo, despeito e insolência), brandura, amor ou amizade, temor, confiança, pudor, despudor, consideração, benevolência, pena, a justa indignação, a inveja, a rivalidade e o desprezo.

p.364

Dialética significa, via de regra, “da natureza do diálogo”, que é uma conversação entre duas pessoas. Hoje em dia, isso significa argumentação lógica; consiste numa técnica de avaliação mútua, através da qual se chega à verdade. É a espécie de discurso utilizada por Sócrates, nos Diálogos de Platão. Platão acreditava que a dialética era o único método pelo qual se poderia conhecer a verdade. O único.

p.372

“O homem é a medida de todas as coisas.” Era exatamente isso que ele estava dizendo sobre a Qualidade.

p.375

Sempre condenamos nos outros aquilo que mais tememos em nós mesmos, pensa ele.

p.397

Sobrevivo principalmente agradando aos outros. Fazemos isso para ficar em paz. Para nos livrarmos, sondamos o que os outros querem que a gente diga, dizemos aquilo com a maior habilidade e criatividade possíveis e, se eles se convencerem, deixam-nos sossegados.

p.408

Naturalmente, os problemas jamais deixarão de existir. A infelicidade e o infortúnio fatalmente ocorrerão em nossas vidas, mas agora sinto algo que antes não sentia, que não se localiza apenas na superfície das coisas, mas as permeia até a medula: nós vencemos. Agora tudo vai melhorar. A gente pode até garantir.