Febre (Texto simples)

Começarei este texto sem ter nenhuma ideia nem sentido em mente. Discorrerei ao sopro da brisa, se é que nesta tarde cálida possa soprar alguma. Confesso que essa contingência possa estorricar-me os miolos mas, como eles já estão enegrecidos das sobrecargas de tensão, mais um escaldão não lhes causará danos de maior. Se por acaso tal acontecer, sendo eu doido ancestral e crónico mal nenhum advirá aos que por si mesmo me acompanham neste comum atributo.

Estou enamorado e nem sequer sei o que o sentimento verdadeiramente é ou representa. Pressinto-o como uma espécie de suposta afecção que me aflora a tez e me humedece e inebria os poros. Suspeito que seja febre mas a febre tradicional manifesta-se por sintomas desagradáveis e penosos. Esta, pelo contrário, é acompanhada de calores langorosamente agradáveis e por espasmos contemplativos de cenários deliciosos e paradisíacos. No entanto, comprovei-o, não se caracteriza como delírio febril. O pasmo avoluma-se-me quando concluo desejar que este estado febril se prolongue e intensifique por tempo indeterminado; o que me faz considerar que os apaixonados são doidos, visto a fúria dos seus ardores ser mais intensa que a serena racionalidade do ritual amoroso.

Racionalidade, amor, paixão, respeito, dedicação…Palavras que representam significandos entre outros referenciais do pensamento. O pensamento é um conjuntivo dicionário cultural assente em pressupostos considerados e aceites como científicos, uma verdade alicerçada em raciocínios gerados do nada. O que me leva a deduzir que o nada é tudo. O absoluto e o vácuo confundem-se e imiscuem-se numa realidade irreal. A matéria é uma ficção dos sentidos sem sentido credível. O que é credível? Sei perfeitamente que sou doido. Mais um adjectivo assente em pressupostos e ideias feitas. Mas eu amo, eu existo, o que agudiza a contradição: como posso amar e existir se o tudo e o nada só se explicam inexplicavelmente? Silogismos, premissas? E se só dimensionalmente formos aparentemente palpáveis? Se a nossa realidade física e psíquica forem o reflexo de um espelho inexistente? Se a filosofia, a ciência, a matéria, a alma forem uma ficção fantasiosa de uma convincente charlatanice intemporal? E a bitola do tempo? Que medida é essa à qual nem concebo unidade? Tantas são as dúvidas às quais os manicómios não respondem… O que me vale é ser incapaz de filosofar e o amor se situar num estádio incólume às investidas da racionalidade.

Moisés Salgado