O GÊNERO DA PALAVRA [DÓ]

Colhemos, do surpreendente livro “NÃO É ERRADO FALAR ASSIM!”, Parábola Editorial, 1ª ed., 2009, pp. 140/141, do renomado linguista e professor MARCOS BAGNO, a interessante lição sobre o gênero da palavra DÓ:

“O caso da palavra dó, no sentido de "pesar, compaixão", se enquadra no mesmo caso da palavra alface e de outras que são tratadas nesse livro. E mais um exemplo de como o gênero gramatical atribuído a uma palavra se altera com o tempo. Infelizmente, também é um daqueles "índices de distinção" que muitas pessoas usam para mostrar que "sabem o certo" e olhar com desdém ou censura para os "ignorantes". Pior para elas: como a história do português (e de todas as línguas) mostra, a vitória da forma inovadora já está garantida e o desdém ou a censura de hoje serão motivos de boas risadas no futuro.

A prova mais eloquente da mudança de gênero de dó é a expressão "uma dó danada", que milhões de brasileiros utilizam todos os dias, de norte a sul, de leste a oeste. Basta fazer uma busca rápida pela internet para verificar seu uso amplo e irrestrito.

Repetindo o que já dissemos no caso de alface: a atribuição de gênero masculino ou feminino a uma palavra é totalmente arbitrária, não existindo nenhuma correlação empírica, concreta, entre a coisa designada como masculina ou feminina e o nome usado para designá-la. E isso que permite que línguas tão próximas quanto o português e o galego, por exemplo, atribuam gêneros diferentes às palavras calor e suor: “o calor” e “o suor”, em português; “a calor” e “a suor”, em galego.

O uso de dó no feminino já aparece até em letras de música compostas por alguém como Arnaldo Antunes que, além de músico, é também um poeta criativo, original, respeitado pela crítica como bom conhecedor e usuário da língua literária. E o caso, por exemplo, da bela "De mais ninguém", parceria dele com Marisa Monte, cujos primeiros versos são:

Se ela me deixou,

a dor é minha só,

não é de mais ninguém;

aos outros eu devolvo a dó,

eu tenho a minha dor.

Se ela preferiu ficar sozinha

ou já tem um outro bem,

se ela me deixou,

a dor é minha,

a dor é de quem tem...

É uma pena que nossos melhores dicionários, neste caso, não contemplem esse uso de dó no feminino. Mais cedo ou mais tarde, porém, vão ser obrigados a isso, pela força do uso. Afinal, como já dizia o poeta latino Horácio, dois mil anos atrás, “Usus est ius et norma loquendi” — “O uso é a lei e a norma da língua”. Estamos muito mal habituados, pela força autoritária da tradição gramatical normativa, a pensar que primeiro alguém estabelece uma lei ou uma norma gramatical para só depois os falantes poderem usar a língua. Ledo engano. É o uso da língua por parte de seus legítimos senhores, os falantes em suas interações sociais, que determina o que existe ou não existe na língua, o que fica e o que é descartado, o que muda e o que permanece igual. Gramáticos, dicionaristas e linguistas só podem fazer seu trabalho porque, antes deles, milhões de pessoas vêm usando a língua do jeito que bem entendem, de acordo com a dinâmica das interações linguísticas em sua vida social. Quem não aceita essa verdade histórica merece toda a nossa mais profunda e sincera dó.”

OBSERVAÇÃO: Da lição dada por esse renomado linguista, conclui-se que, de fato, devemos evitar o denominado “preconceito linguístico”, haja vista que a língua é, realmente, viva e mutável.

David Fares
Enviado por David Fares em 10/06/2011
Reeditado em 17/06/2011
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