POR QUE NÃO USAR "ATRAVÉS DE"? USE SIM.

POR QUE NÃO USAR “ATRAVÉS DE”? USE SIM.

De uns tempos para cá, simplesmente “por ouvir dizer que não se deve usar”, alguns deixaram de utilizar a expressão “através de” e substituíram-na por “por meio de”, por intermédio de” e similares. Chega um momento da composição que começam a sentir dificuldade e seu texto acaba eivado dessas expressões, cujo emprego poderia ser equilibrado com o simples e eufônico “através de”.

Esse fenômeno de abandonar a simpática expressão deve ter ocorrido porque se chegou à conclusão de que o “através de” traz em si a idéia de perpassar, de transpassar, principalmente a luz, ou seja, algo que atravessa alguma coisa, de preferência diáfana. Há certa lógica nisso, só porque tanto a expressão “através de” quanto o verbo “atravessar” vieram de um mesmo radical: “través”.

No Dicionário Escolar das Dificuldades da Língua Portuguesa, elaborado por Cândido Jucá (filho) para o Ministério da Educação e Cultura, 3ª edição, 1968, está que “Través” é um substantivo masculino que significa “esguelha, obliqüidade, viés; flanco, lado”. Como se pode ver, nada de luz que atravessa ou perpassa alguma coisa! A esse substantivo se juntou, primeiramente, a preposição A e se formou a expressão ATRAVÉS, posteriormente transformada na locução prepositiva ATRAVÉS DE, que, no mesmo dicionário, significa “de lado, a lado de, pelo meio de, por entre”.

Daí a se atingir o sentido figurado atual de introduzir uma expressão adverbial de instrumento ou de meio foi uma questão de ampliação de significado, como ocorre com tantas e tantas palavras da nossa língua. No entanto, antes de falar dessa ampliação de significado, vejamos dicionaristas mais recentes.

Segundo o Aurélio, a locução através de, que significa “de lado a lado; atravessadamente; transversalmente”, apresenta as seguintes possibilidades de uso:

1. De um para outro lado de: “Para atingir suas metas, deveria passar

através de rios e montanhas”, “E, através da vidraça, espia a rua”

(Austro-costa).

2. Por entre: “Os cabeços das serras negrejam... entre nuvens

cinzentas” (Camilo Castelo Branco), “Conserva sempre o bom

humor, através de todas as vicissitudes da vida”.

3. No decurso de: “E, subjugado o olvido, através das idades, /

Violador de sertões, plantador de cidades, / Dentro do coração da

pátria viverás” (Olavo Bilac) – “Foi sempre o mesmo homem,

através de anos e anos”.

4. Por intermédio de.

Como se pode ver, para cada significado, o dicionarista fornece dois exemplos, alguns de escritores consagrados, outros de lavra própria. Mas não deu exemplos para a última possibilidade, pois parece ter faltado a convicção que sobrou nas três anteriores, em função da consagração de uso. O através de com o significado de por intermédio de talvez começasse a se firmar e o dicionarista ainda esperaria um pouco mais. Já houve época em que, para um neologismo ou nova expressão ser dicionarizada, era preciso um longo tempo de uso, coisa de 20 a 30 anos. Com as modernas comunicações através das novas tecnologias, esse tempo de incorporação já vem ocorrendo até de um ano para o outro.

O dicionarista Houaiss, por sua vez, diz que a locução através de apresenta os seguintes significados e dá os exemplos:

1 pelo meio de, por entre

Ex.: ver o Sol através das nuvens

2 por dentro de; pelo interior de

Ex.: o raio passa através da matéria

3 por, pelo

Ex.: o ladrão entrou na casa através da janela. Através da vidraça

via a chuva cair

4 no decorrer de (medida de tempo)

Ex.: esses costumes prolongam-se através dos séculos

5 de um lado para o outro (de qualquer espaço delimitado)

Ex.: caminharam através de florestas e pântanos

6 Derivação: sentido figurado.

por meio de; mediante

Ex.: educar através de exemplos - Conseguiu o emprego através de

artifícios

Houaiss, mais ousado (ou mais atualizado) do que Aurélio, acata, no item 6 de suas definições, a ampliação de significado da expressão através de, pelo processo da Derivação: sentido figurado, a qual assumiu a significação de por meio de; mediante. E dá exemplos muito claros desse novo sentido, ao contrário do Aurélio, que, no item 4, fala também da ampliação do significado para Por intermédio de, mas se manteve de forma tímida.

E a Derivação, na forma de ampliação de sentido ou de junção de afixos a radicais, é o mais importante recurso de aumento vocabular e de transformação do léxico da Língua Portuguesa. Negar a Derivação é negar a vida de nossa língua. Vejamos dois ou três exemplos de palavras que, ao longo dos anos (ou através dos anos), foram ampliando seu significado, algumas vezes até perdendo a denotação original:

a) azulejo já foi um ladrilho vidrado azul usado para revestir parede;

hoje há azulejos verdes, amarelos, estampados, de todo tipo;

b) esquema já foi na Antigüidade maneira de ser, gesto; hoje é

projeto, figura, esboço;

c) pé de mesa foi uma expressão formada a partir das patas de

animais; hoje é nome, lexia;

d) salário já foi pagamento feito através de um punhado de sal; hoje é

ordenado;

e) sinistro era apenas qualquer coisa que estivesse na mão esquerda;

hoje é tragédia, desastre, catástrofe;

f) subsídio já foi reserva de soldados, reforço numa guerra; hoje é

ajuda, reforço monetário, financeiro;

g) Véspera já foi o cair da noite apenas; hoje é um dia todo anterior a

algum evento

h) zelo já foi ciúme, ardor, desejo; hoje é cuidado, manutenção.

Todas as expressões acima, como se viu, já tiveram uma significação muito mais restrita do que a que apresentam hoje, com a ampliação do seu sentido. Cremos mesmo que não há ainda um estudo sobre a porcentagem de significados denotativos (reais) e conotativos (figurados) que usamos, mas certamente deve haver um equilíbrio entre ambos. Muitas palavras evoluíram seu significado original para um sentido figurado. O que se enfatiza, no entanto, é que todo sentido figurado tem sua base necessariamente no sentido real.

Para resumir, percebemos que se pode usar a expressão através de de muitas formas, principalmente quando ela apresenta, dentre outras, idéia de movimento, de passagem, de transposição, de deslocamento ou de transcurso no tempo ou no espaço, conforme se vê nos exemplos dos dicionários.

Entretanto, como a expressão ainda é noviça nesse novo significado, é conveniente evitar algo como “O presidente falou através de seu porta-voz”, pois os mais puristas poderiam alegar, como nos chamou a atenção Josué Machado, que o porta-voz precisaria de mais furos no corpo do que o normal. Mas, mesmo aqui, é mais uma brincadeira do que uma realidade!

Com essas explicações, esperamos que a agradável expressão através de seja alforriada de vez e passemos a usá-la sem pejo. Parece-nos mais eufônica do que “por intermédio de”, por meio de”. Mas é tudo uma questão individual. Opte pelo que quiser. Mas não tire o direito dos outros de fazer a sua própria opção dentro das possibilidades que a língua oferece.

Prof. Leo Ricino

Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, instrutor na Ernst & Young Universidade Corporativa e professor na Fecap - Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado.

REFERÊNCIAS:

Dicionários:

1) Novo Dicionário Aurélio – Editora Nova Fronteira, 1ª ed., Rio de

Janeiro, 1975

2) Dicionário Escolar das Dificuldades da Língua Portuguesa – MEC,

3ª ed., Rio de Janeiro, 1968

3) Dicionário Etimológico Resumido – Antenor Nascentes, MEC, Rio de

Janeiro, 1966

4) Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa – José Pedro Machado,

2ª ed., Editorial Confluência, Lisboa, 1967

5) Dicionário de Curiosidades Etimológicas – A. Mauricéa Filho, Edições

de Ouro, Rio de Janeiro, 1967

6) Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss – Antônio Houaiss, Editora

Objetiva, São Paulo, 2003

7) Michaelis – Dicionário da Língua Portuguesa, Ed. Melhoramentos,

São Paulo, 2002

8) Glossário das Dificuldades Sintática – Zélio dos Santos Jota, Editora

Fundo de Cultura, São Paulo, s/d

Outros:

1) Manual de Redação Profissional – José Maria da Costa, Editora

Millennium, Campinas, 2002

2) Nova Gramática do Português Contemporâneo – Celso Cunha e

Lindley Cintra, 3ª ed, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2001

3) Moderna Gramática Portuguesa – Evanildo Bechara, 37ª ed, Editora

Lucerna, Rio de Janeiro, 2004

4) Tirando Dúvidas de Português – Odilon Soares Leme, 3ª ed, Editora

Ática, São Paulo, 2003

5) Cem Erros que um Executivo Comete ao Redigir (mas não poderia

cometer) – Laurinda Grion, Edicta Editora, São Paulo, 1997

6) Não Erre Mais – Luiz Antonio Sacconi, Cia. Editora Nacional, São

Paulo, 1976

7) 1001 Dúvidas de Português – José de Nicola e Ernani Terra, 12ª ed,

Editora Saraiva, São Paulo, 2001

Artigo publicado na revista CONHECIMENTO PRÁTICO LÍNGUA PORTUGUESA nº 18, Editora Escala Educacional, em 2009.

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 18/06/2011
Reeditado em 18/06/2011
Código do texto: T3042387