O QUE É ERRO DE GRAMÁTICA EM LÍNGUA PORTUGUESA?

O QUE É ERRO DE GRAMÁTICA NA LÍNGUA PORTUGUESA?

Há alguns bons anos, venho refletindo muito sobre o conceito de erro gramatical. Acho que muitas vezes alguns “erros” por aí apregoados não passam de maneiras diferentes de empregar a língua. Num artigo nesta mesma revista, eu disse que nada é tão democrático quanto a língua. Mas..., como toda democracia, ela requer sacrifícios e concessões no seu emprego. Democracia não é fazer o que se quer mas sim o que é possível fazer, com respeito aos demais. O mesmo se pode dizer da língua: não se pode usar de qualquer jeito mas sim de acordo com certo padrão.

Que padrão é esse? Quem estabeleceu esse padrão? Por que esse padrão e não outro padrão? Muitas perguntas, mas creio que basta uma resposta. Temos de garantir à língua sua função primordial: promover a comunicação e, com ela, garantir a inteligibilidade das mensagens. Ora, para isso, é preciso usar um padrão lingüístico que garanta a universalização de entendimento dentro da língua. Esse padrão é conhecido como norma culta e é usado pelos meios de comunicação, pelos livros não literários e literários, pelas pessoas de boa formação cultural,...

Enfim, basicamente a norma padrão ou culta é conhecida e reconhecida. É a ensinada nas escolas ou, pelo menos, deveria ser. A escola deve partir da língua usada pelos seus alunos e ensinar-lhes a norma culta. Senão, a escola para nada serve, pois todas as disciplinas e todo o repertório do homem são consolidados pela língua padrão. A norma culta é a norma da possibilidade de ascensão social.

Se aceitássemos como padrão os vários regionalismos e mesmo dialetos, acabaríamos por formar outras línguas. O latim vulgar nos deu exemplo disso e transformou-se em várias línguas, incluindo a nossa. Talvez aqui possamos ampliar o conceito de poliglota. Deixa de ser só aquele que fala várias línguas para incluir também aquele que consegue pelo menos compreender e falar razoavelmente os vários regionalismos e dialetos de sua própria língua.

ERRO DE ORTOGRAFIA

Bem, voltemos aos erros de português. A língua portuguesa é etimológica, ou seja, as palavras são escritas de acordo com sua origem. Assim, não existe, por exemplo, “octagésimo” em português porque a forma “octogésimo” já veio assim do latim octogesimu. Escrevemos “justiça” porque o “t” latino, em determinadas situações e a partir de algum momento, transformou-se em “ç” em português: justitia > justiça; petitio/onis > petição: locutio/onis > locução, etc.

Portanto, sendo nossa língua etimológica e assim consagrada nos oito países que a têm como oficial, escrever de forma que fuja à origem é um erro de português. Não dá para aceitar uma ‘caza’ assim, com “z”, porque não era assim no latim. Ou ‘análize” porque veio do latim “análusis”, etc. Erro de ortografia é um erro gramatical e linguístico.

ERRO DE ACENTUAÇÃO GRÁFICA

Atualmente, após o recente Acordo Ortográfico, a língua portuguesa passou a ter 26 letras. Mas o número de fonemas e das diferentes entoações é maior (só com as vogais, por exemplo, temos 12 fonemas). É exatamente por essa diferença numérica que fomos obrigados a criar recursos auxiliares na representação gráfica dos fonemas e entoações. Por isso surgiram os sinais diacríticos ou notações léxicas (til, cedilha, acentos agudo, grave e circunflexo, hífen, trema e apóstrofo) e os dígrafos, esses também para adaptação ortoépica.

A acentuação gráfica é, portanto, uma necessidade da escrita para representar corretamente a pronúncia das palavras. É evidente que “medico” é diferente de “médico” e, na fala, isso não apresenta qualquer dificuldade. Mas como representar as duas pronúncias na escrita? Aí entra o acento gráfico colocado sobre o acento tônico da palavra representada: médico. “Amássemos” e “amassemos” não apresentam complicação na fala mas possivelmente apresentariam na escrita, mesmo sendo verbos diferentes, se não contássemos com o recurso do acento gráfico. Idem com “amara” e “amará”, “pôde” e “pode”, etc.

Diante do exposto, já se percebe a imprescindibilidade do uso dos acentos gráficos para a escrita. Portanto, erro de acentuação gráfica também é erro gramatical.

ERROS DE CONCORDÂNCIA

A maioria das dez classes de palavras da nossa língua são variáveis, flexíveis. Essas flexões ocorrem para atender sintaticamente à concordância entre elas. Metaforicamente, podemos afirmar que há entre as classes de palavras dois fortes feudos, um tendo como senhor o substantivo, que domina quatro vassalos: o adjetivo, o artigo, o numeral e o pronome. Esses vassalos, absolutamente obedientes e servis, se flexionam para concordar com seu senhor e “rei”, o substantivo, em gênero (masculino, feminino e até neutro) e número (singular e plural). A esse fenômeno se dá o nome de concordância nominal.

Outro senhor na morfologia é o verbo, que tem um súdito seu: o advérbio. No entanto, quando passamos para a sintaxe, o verbo vira vassalo obediente do seu sujeito, totalmente subserviente a ele (deixemos de lado aqui a velhíssima discussão sobre quem é mais importante: o sujeito ou o predicado?). Aí o verbo concorda com seu sujeito (ou seja, sua pessoa reta, que sempre pode ser representada pelos pronomes pessoais retos) em número (singular e plural) e pessoa (1.ª, 2.ª e 3.ª). A esse fato se dá o nome de concordância verbal.

Por causa do fenômeno da concordância é que não podemos aceitar frases como a dita por uma repórter do tempo numa rádio de São Paulo: “... isso porque o nível dos córregos e rios continuam bastante elevados.” (Rádio Jovem Pan, 21/12/09). O verbo deveria estar no singular porque seu sujeito é “o nível dos córregos e rios”, cujo núcleo é a palavra “nível”. E o “elevados” também deveria concordar com “nível” e passar para o singular. Também é errada a frase dita por outro repórter de outra rádio de São Paulo: “O pensamento dos Estados Unidos sobre combustíveis fósseis, aquecimento global e mudanças climáticas começam a mudar, e o etanol brasileiro foi beneficiado com isso.” (um repórter da Rádio Bandeirantes, janeiro de 2010), visto que o núcleo do sujeito é “O pensamento”, com o qual o verbo “começar” deveria concordar. No singular, portanto.

Para falar de concordância, precisaríamos, no entanto, de um artigo exclusivo. Mas... erro de concordância é, sem dúvida, erro gramatical.

ERRO DE REGÊNCIA

A regência é a relação de subordinação entre as palavras e entre as orações. Isso quer dizer que a própria concordância é um fenômeno de regência, pois o verbo é subordinado ao sujeito, assim como os adjetivos (adjetivo, artigo, numeral e pronome) são subordinados a seu substantivo. Todas as orações subordinadas são regidas pela sua oração principal e nisso está (além do fato de exercerem função sintática) sua diferença com as orações coordenadas, não regidas e sem função sintática.

Mas a regência a que queremos nos referir aqui é a do verbo com seus complementos ou ausência deles e a dos nomes e seus complementos. Fiquemos com um exemplo: os alunos que concluíram o ensino médio deveriam saber que os verbos que indicam movimento regem a preposição A: ir a, chegar a, etc. Portanto, empregar “Fui no cinema” não está de acordo com a regência do verbo e isso é inaceitável pela norma padrão.

Erro de regência é erro gramatical.

ERRO DE COLOCAÇÃO

A colocação das palavras na nossa língua obedece à semântica (“grande homem” é diferente de “homem grande” e para isso concorre apenas a colocação do adjetivo antes ou depois do substantivo) e à eufonia (“Não vi-a naquela loja” soa mal, enquanto “Não a vi naquela loja” nos soa muito bem). Só esclarecendo que a palavra eufonia é formada pelo prefixo grego “eu-”, que quer dizer bom, agradável, nobre, e “fonia”, voz, som. O seu antônimo é a cacofonia, do grego “kakós”, desagradável, mau, ruim.

Erro de regência é erro gramatical.

ERRO DE PONTUAÇÃO

Ao contrário do que muita gente pensa, a pontuação é antes um fenômeno sintático e pouco tem que ver com a respiração, por ser predominantemente um fenômeno de representação na escrita. É a maneira que temos para indicar as pausas e entoações nas frases escritas. A rainha dos sinais de pontuação é, sem dúvida, a vírgula, o sinal gráfico dentre os específicos para essa finalidade de marcar pausas e entoações mais usado.

Separar o sujeito do seu verbo ou os objetos dos verbos que eles completam com uma vírgula é um grave erro gramatical.

OUTROS ERROS GENÉRICOS

É claro que também é erro de português, mais especificamente de comunicação, a falta de coesão ou de coerência, como na frase “Quem tem um refrigerador de 20 polegadas não viu a Copa de futebol com o mesmo prazer de uma pessoa cujo aparelho é de 42”, já que o produtor desse texto empregou, incoerentemente, uma simples palavra errada: ele queria dizer televisor e usou refrigerador.

Então há outros erros que podemos incluir como de português. As frases ambíguas, por exemplo. Assim, numa frase como “As garotas estavam histéricas com a matança dos animais”, ficamos confusos com a mensagem porque os animais tanto podem ser pacientes como agentes da ação verbal. Se o leitor, que é o rei da escrita, ficou confuso, a frase está errada na sua comunicação, embora gramaticalmente ela esteja perfeita.

ERROS???

Bem, até aqui vimos casos de erros mesmo, gramaticais ou de comunicação. Mas... seria erro em português colocar o “o” antes do “que” numa frase interrogativa, como afirmam peremptoriamente alguns gramáticos? Estaria errada a frase “O que esses mestres esperam de nós?” só porque aparece o “O” antes do pronome interrogativo? Vamos ver a opinião de consagrados mestres da língua portuguesa e depois cada um tirará sua própria conclusão. Eu já tenho a minha.

Vitório Bergo, no seu “Erros e Dúvidas de Linguagem”, Livraria Editora Freitas Bastos, Rio de Janeiro e São Paulo, 1941, p. 179, diz que “Em frases interrogativas, justifica-se às vezes aquele o antes do que; mas também é certo que ele se dispensa em todas elas”.

Domingos Paschoal Cegalla, no seu “Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa”, Editora Nova Fronteira, São Paulo, 2001, p. 298, diz que “Em frases interrogativas, é lícito antepor ao que o artigo o, como partícula de realce”. Dá três exemplos e acrescenta: “A partícula o, neste caso, imprime à interrogação mais vigor e harmonia”.

Napoleão Mendes de Almeida, no seu “Dicionário de Questões Vernáculas”, Editora “Caminho Suave” Ltda., São Paulo, 1981, p. 256/7, diz: “Com função pronominal, o pronome que não deve vir precedido de o no início de uma interrogação; o certo é perguntar: Que quer você? Que há? Que é que você está pensando? Mas que querem eles? (e não: O que quer você?”, etc.”

Zélio dos Santos Jota, no seu “Glossário de Dificuldades Sintáticas”, Editora Fundo de Cultura, 2 ed., Rio de Janeiro, 1965, p. 210, talvez seja o mais enfático, ao dizer: “Já está consagrado o emprego do o em interrogações. Que o dispense quem quiser. Aliás, a maioria dos fatos da língua escapa à rigidez das regras gramaticais”.

E aqui poderíamos ficar transcrevendo as várias opiniões, como a de Aires da Matta Machado Filho, que aceita o o antes do que, mas diz ser deselegante; Vasco Botelho do Amaral é favorável ao uso do o; Silveira Bueno não só é favorável como também condena os contrários e aponta vários exemplos de autores consagrados, baseando-se em Rui Barbosa (contrário) e Ernesto Carneiro Ribeiro (favorável); Evanildo Bechara aceita o emprego de o que; Rocha Lima também; Celso Cunha e Lindley Cintra aceitam e dão exemplos, destacando que o emprego do o que dá mais ênfase à interrogação, e, finalmente, Said Ali cita como pronomes interrogativos, dentre outros, o que ou o que, equivalentes de “que coisa”.

Então podemos agora perguntar: o que querem os gramáticos que afirmam que tal emprego é errado? Não se pode falar em erro de português quando há tanta divergência entre excelentes autores e cultores da língua.

À VISTA ou A VISTA; À DISTÂNCIA ou A DISTÂNCIA

Só para encerrar este artigo com mais um problema, em “Vendas a vista” temos de crasear ou não? Seria errada uma forma ou outra? Há gramáticos e professores que fecham questão e enfatizam: crase para que se o oposto é “vendas a prazo” e não “ao prazo”? Há controvérsias. Fiquemos com apenas dois ótimos gramáticos e latinistas.

Domingos Paschoal Cegalla, no Dicionário citado acima, p. 47, é sucinto e peremptório: “à vista, à vista de. Locuções acentuadas. Exs.: Efetuamos o pagamento à vista. / À vista de tais provas, não há negar os fatos”.

Napoleão Mendes de Almeida, no seu “Dicionário de Questões Vernáculas”, acima citado, p. 5, também é enfático e peremptório: “A vista – Sem crase na expressão ‘pagamento a vista’, porque não se diz ‘pagamento ao prazo’; não há nenhuma determinação”.

A mesma duplicidade de interpretação também achamos com a locução “a distância” quando ela não vem determinada. Há exemplos com crase e sem crase. Quem está errado? Cegalla, no seu “Dicionário” cita exemplos de ótimos autores, como “Pedras de gamão estalavam à distância.” (Graciliano Ramos, Infância) ou “Observava à distância os convidados do cirurgião.” (Fernando Namora, O Homem Disfarçado).

De novo a pergunta: há erro de português em crasear ou não as expressões a vista e a distância? Por isso, estamos propícios a aceitar que erros de gramática são os que se consagram dentro dos itens acima salientados: ortografia, acentuação, concordâncias verbal e nominal, colocação e pontuação. E há erros de comunicação. Sem ser permissivo e aceitando-se o bom senso da norma padrão, há que se entender que língua não é coisa exata e tem suas razões que “a própria razão desconhece”.

Prof. Leo Ricino

Mestre em Comunicação e Letras

Instrutor na Universidade Corporativa Ernst & Young e professor na Fecap

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 11/08/2011
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