VENDO ATRAVÉS DA VENDA

VENDO ATRAVÉS DA VENDA

Os ditos populares, máximas, provérbios e citações, não raras vezes, proliferam sem que os multiplicadores tenham percepção da irracionalidade, da incoerência e falta de lógica que norteiam esses recursos linguísticos. Ouve-se, constantemente, até proferido por “lúcidos” comunicadores, e por que não dizer por profissionais da área, o anexim “A Justiça é cega”.

Algumas inferências, nem sempre elogiosas, devem e podem ser advindas dessa assertiva, norteadas, naturalmente, sob o prisma de que as palavras ou a máxima traduzam, com fidelidade, a ideia conceptual.

Quer nos parecer que, inicialmente, somos levados a inquirir se o axioma generaliza-se a todos os países, sem entrarmos no mérito do regime político vigente. E, se o símbolo não for caracterizado como o é no Brasil, a Justiça continuaria cega ou seria contemplada com outro aforismo?

Alude-se, por certo, ao símbolo e não à ciência do direito. Contudo, não se pode cortar liames que vinculem um à outra. Sendo o primeiro destituído da visão, embora represente a ciência, não a condiciona, necessariamente à cegueira. Toda vez que se faz referência à Justiça surge no nosso imaginário a figura de uma mulher com os olhos vendados, tendo às mãos uma balança e uma espada. Cremos ser oportuna a citação de Edgar Argo: “A Justiça pode ser cega, mas tem aparelhos de escuta muitíssimo sofisticados”.

Parece-nos, a priori, que a venda e a cegueira não coadunam. Os cegos não se valem de vendas, e mesmo sem percepção visual não são privados de emitir pareceres que estejam alicerçados na Justiça. Sabe-se, incontestavelmente, que a identificação não é feita somente com olhos. Os demais sentidos também nos permitem “enxergar”. Diríamos até que o uso da venda, ainda que nos prive do ver, não necessariamente nos torna cegos. A cegueira priva-nos de ver, mas não de perceber.

Recorrendo a figuras de linguagem, podemos ficar, mesmo vendo, “cegos de raiva”.

Mas quando e como se chegou à simbologia?

A venda surge, quem sabe, como elemento caricato, sendo creditada sua origem a ato irônico em relação às representações da Justiça, como acontece numa expressiva estampa de A Nave dos Loucos, de 1494, de Sebastian Brant. A partir de então, dá-se recuperação do adereço, que, concebido como crítica a uma Justiça tonta, iníqua e sem direção, passou a ser considerado como símbolo da imparcialidade daqueles que representam o Estado.

Quando das aparições primeiras, a deusa da Justiça está com o rosto descoberto, sem venda, aludindo à necessidade ter os olhos bem abertos e observar atentamente e com perspicácia os pormenores relevantes para a justa aplicação da Lei.

Segundo a mitologia grega, a figura de mulher que representa a Justiça é a deusa Thémis. Dotada de sapiência, esposa de Zeus, criadora das leis, dos ritos e dos oráculos.

Na Grécia, a Justiça foi representada pela deusa Diké (filha de Thémis) que, de olhos abertos, em pé, segurava uma espada e uma balança de dois pratos, sem fiel, ou por Thémis, exibindo apenas uma balança ou uma balança e uma cornucópia. Os olhos simbolizam o saber-puro (sapientia) e mostram-nos a concepção que os Gregos tinham do direito: especulativa, abstrata, de generalizações.

Em Roma, inicialmente, a deusa surge sem venda. Posteriormente, a deusa romana Ivstitia aparecia de olhos vendados, sustentando uma balança já com o fiel ao meio. A venda não caracterizava justiça cega, mas que tratava a todos com igualdade. A espada representa a força, prudência, ordem, regra e o que a consciência e a razão ditam. A balança simboliza a equidade, o equilíbrio, a ponderação, a justeza das decisões na aplicação da lei.

A venda tem como função evitar privilégios ou concessões, impedindo que o poder econômico ou vertentes outras, possam, independentes da Justiça, manipular o fiel em seu benefício, rompendo a equidade. A balança pesa o direito que cabe a cada uma das partes e a espada é indispensável para defender os valores do que é justo, já que a norma sem a possibilidade de coação ficaria na dependência apenas das regras de decência de cada comunidade, o que poderia ser ineficaz para garantir o mínimo ético fundamental à harmonia social.

Afirma-se que a espada sem a balança é força bruta, assim como a balança sem a espada tornaria o Direito impotente perante os desvalores e arbitrariedades que insistem em ser perenes na história da humanidade. O extraordinário Rui Barbosa já preconizava: “Justiça tardia não é Justiça, é injustiça manifesta”.

Artistas alemães do século XVI, vivendo ainda nos resquícios da Idade Média e cerceados por uma sociedade estamental que, além de impossibilitar a mobilidade social, utilizava o Direito única e exclusivamente para perpetuar as conquistas dos que detinham o poder, por pura ironia, impuseram a faixa nos olhos da Deusa, explicitando o que era mais do que real na época: a total dissociação do Direito em relação à Justiça, aliada à parcialidade dos julgadores. Diga-se que a imagem original não comportava a venda, no entanto, com a evolução da humanidade, por obra dos alemães, essa se faz presente até hoje.

O Poder Judiciário no Estado moderno tem a tarefa da aplicação das leis promulgadas pelo Poder Legislativo. Recomenda-se a doutrina democrática de manter independentes as decisões judiciais, e vice-versa, como uma das formas de evitar o despotismo.

Partindo do pressuposto que A Justiça seja cega, como o símbolo representaria a cegueira? De olhos fechados somente, e sem a venda? Apoiando-se numa bengala desmontável? Cremos que os olhos cerrados, num monumento, até podem nos levar ao julgamento da indiferença, ou seja, abrem-se à conveniência dos prepotentes. E a bengala? Como situá-la dentre os instrumentos do Direito?

Se considerarmos que o tempo nos fez ver divisões no átomo, tornou finita a distância da Terra à Lua, permitiu-nos nominar como calcâneo o tendão de Aquiles, por que não podemos adequar o símbolo à Justiça?

Ficaríamos, talvez, com a figura da Deusa, sem a venda, de olhos abertos, como o fora inicialmente, levando-nos a reconhecer a eficácia e eficiência de nossa insigne instituição. Ainda que se quisesse fazer alusão a ímprobos julgamentos, não rara vezes equivocados e expondo a morosidade, por certo não poderia ser classificada como cega. Ou deixa-se como está, afirmando-se, ante sua proficiência ou não, que a Justiça é imparcial.

Em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília, encontra-se a escultura A Justiça, obra do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti. Segue a tradição de representá-la com os olhos vendados, a fim de demonstrar a sua imparcialidade, e a espada, símbolo da força de que dispõe para impor o direito. Em alguns Estados da Federação vamos encontrar representações da Justiça também com uma balança, que configura a ponderação dos interesses das partes em litígio.

Pode-se dizer, e bem o sabemos, que com a venda, em pé ou sentada, não vamos alterar a operacionalidade da Justiça. No entanto, permitam-nos, com a devida vênia, que nossa Justiça até pode ser, frente a sentenças discrepantes, considerada como cega, porém não o é pelo uso da venda.

Não se chega a rei, em terra de cegos, por termos um olho só. Há necessidade de que tenhamos, ao menos com um olho, a percepção óptica. Do contrário, a premissa apresenta deficiências visuais.

Jorge Moraes – jorgemoraes_pel@hotmail.com março de 2012

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 03/04/2012
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