Se você não "puser", evite "ponhá".

Se você não “puser”, evite “ponhá”

Temos garimpado, ao sabor de profícuos e longevos cinquenta anos, os fecundos caudais de nosso manancial linguístico. A faiscação, nos cursos fluviais ou nos bicames, tem-nos permitido, cingido aos limites da bateia e à inépcia de quem a manipula, descortinar rútilos seixos em meio ao cascalho.

O mister, pela pluralidade da abrangência e pelo universalismo do enfoque, leva-nos a inquirir, pesquisar, questionar, refletir e, naturalmente, acentuar nosso desvelo.

Inúmeras palavras, frases ou construções, desafiando nossa visão perceptiva, advêm de núcleos regionais, passivos de híbridas contribuições, propaladas, quase que predominantemente pela oralidade, expondo no ventre radicular, ainda que de maneira inconsciente, metaplasmos, tropos e conotações, matizando e enriquecendo os pendões semânticos.

Mesmo com a propagação de modernos e eficientes veículos de comunicação, abrangendo os mais longínquos redutos de nosso país, propensos, como todos nós, a incorrerem em deslizes, algumas formas, já cristalizadas, dificilmente desfrutarão de assento à mesa que preconiza a correção linguística. E outras que já o possuem, cedem lugar a corruptelas que surgem com força avassaladora: “é nóis, traveis”. A multiplicidade dos níveis de linguagem, expressos nos ‘informativos’, ‘novelas’ e ‘programas de auditório’, dentre outros, nem sempre se mostra operante, até porque, foneticamente, não temos, em virtude de nossos falares, unicidade vocabular.

A face dinâmica do idioma faz com que tenhamos, constantemente, o desabrochar de palavras que, mesmo violentando princípios gramaticais, espargem, na ingenuidade, a essência das flores nativas. Ratifica-se a asseveração ao ouvirmos “enricar”, ”enricou” ainda que o verbo não seja flexionado em todas as pessoas. Nunca ouvimos ‘eu enrico’. ‘Enriquecer’ distancia-se do adjetivo rico, elitiza-se. Sem limites à criatividade, chegamos à aglutinação “namorido”. A espontaneidade fez com que um garoto, (Jorge M.Jr), hoje professor de Biologia, após desastrada queda, solicitasse que o joelho ferido fosse “mercuriado”. A falta de um termo adequado, recorrendo à jocosidade, leva-nos a “coisar”. E intensificam-se as formas “embregalhou”, “cervejou”, “rapinou”, “carecou”, mesmo inviáveis em todas as pessoas e tempos. Destaca-se, nesses exemplos, a existência do substantivo feminino e, como decorrência, a criação de verbo da primeira conjugação.

Canalizemos nossa atenção às formas “poblema” ou “pobrema” ou “probrema”, “almário”, outras mais complexas como “desinteria” ou a simples troca de lagarto por “largato”, além de “depedrar” (e não temos pedra!?). A troca do R pelo L ou vice-versa, fenômeno linguístico muito comum, mesmo involuntário, recebe a denominação de “rotacismo” (do grego rotakismós – uso demasiado ou errôneo da letra r). O fonema que é alvéolo-dental passa a ser palatal, pode ocorrer, também, pela acomodação da língua. Ao se falar “pobrema” em vez de problema, o falante terá de erguer menos a ponta da língua, ocorrendo acomodação linguística, ou melhor, torna-se mais fácil pronunciar a primeira que a segunda palavra.

Não são raros exemplos de rotacismo. Cráudio, Cláudio, Gláuber – Gráuber. (Zorra-total), /armoço/, /craro/ , /árbum/, /broco/, /brusa/,/ croro/ /pranta/, /prástico/. Quanto ao Cebolinha, da turma da Mônica, (Maurício Sousa) verifica-se um problema fonoaudiológico, denominado lambdacismo (do grego lambdakismós, pelo latim lambdacismu). O processo parece ser comum quando acompanhado de outra consoante, formando um encontro consonantal regular (br, cr, dr, fr, gr, etc.). Desconhecido de muitos, esse aspecto da língua ocorre há séculos, podendo ser encontrado nos versos do insigne vate Luís Vaz de Camões, conforme se atesta a seguir, em seu livro Os Lusíadas, vindo a público pela vez primeira em 1572:

"E não de agreste avena, ou frauta ruda." (canto I, verso 5)

"Pruma no gorro, um pouco declinada." (canto II, verso 98)

"Era este Ingrês potente, e militara" (canto VI, verso 47)

As palavras ‘flauta’, ’pluma’ e ‘inglês’ são empregadas com substituições do ‘l’ pelo ’r’. Mas quem de nós poderá contestar Camões? Nossa ousadia não chega a tanto. Afirmam os filólogos (Portal Conhecimento Prático – UOL) que as substituições de ‘l’ por ‘r’, que temos hoje, provêm do latim, como “brando”, que veio de “blando”; ”fraco” que veio de “flaccus”; “obrigação” que veio de “obligatio”, “prata” que veio de “platta” (platinado). Igualmente surgiu com a mudança do ‘s’ que ocorreu no latim na posição intervocálica como em flos (flor), que gerou flosem e passou a florem. Em outras línguas, derivadas do latim, conforme destacamos, a consoante original permaneceu como no espanhol, que manteve o ‘l’ nas palavras “blando”,” flaco”,”’obligación” e “plata”.

Cebolinha, ao pronunciar “belmudas” em vez de “bermudas”, caracteriza o efeito contrário ao rotacismo, ou seja, o lambdacismo. A foniatria o considera como incapacidade de pronunciar o ‘l’, como ocorre na linguagem infantil em que a criança pronuncia “tlês” em vez de “três”. Destarte, tanto o rotacismo quanto o lambdacismo podem ser apenas reflexos da linguagem ainda não amadurecida, - em formação -diferentemente dos seus pares com uma espécie de lalação. Cabe também mencionar que anomalias fonéticas podem ser responsáveis pela substituição. No caso de “cabeleireiro”, é muito comum pronunciarem “cabelelero”, causando inclusive a monotongação do ditongo ei: uma espécie de variação linguística.

Volvamos nossos olhos em outra direção.

Quem de nós, mesmo comedidamente, não externou alegria, bradando: “É big, é big, é big...” A saudação sempre nos pareceu estranha: não conseguíamos perceber como estabelecer vínculos entre os segmentos, assim como presença de um estrangeirismo, quem sabe dimensionando a grandeza do momento. E o que encontramos no Dicionário Brasileiro de Etimologia? A expressão nasceu na vida estudantil. No lugar de “big”, tínhamos “pique” do latim vulgar “piccare”, “picar”, fazer como o “piccus”, “picanço”: ave que bate o bico na madeira. O repique do sino, inspirado no som que ele faz nesse ofício “É pique, é pique, é pique – bordão acrescido a parabéns, junto a “Ra-tim-bum”. O primeiro “é pique” saudava a chegada de Ubirajara Martins de Souza, aluno do curso de Direito, conhecido como “Pic-pic”. Ele portava uma pequena tesoura, aparando a barba e o bigode pontiagudo, motivando o apelido.

O grande mestre Deonísio da Silva comenta que em outras regiões, por influência dos imigrantes alemães, apreciadores de cerveja, o bordão era cantado com a substituição de “pique” por “big”. “ Ra-tim-bum”: de expressão surgida nos 1930, no Largo São Francisco, em São Paulo. Segundo o professor Eduardo César Silveira Vita Marchi, um rajá indiano visitava a Faculdade de Direito da USP e seu nome soava aos ouvidos dos estudantes como “Ra-tim-bum”. À época os botecos não tinham como armazenar quantidade de cervejas geladas. Os freqüentadores aguardavam pelas “loirinhas” que tomavam tempo para serem resfriadas em barras de gelo. No momento em que o garçom vinha à mesa, portando as garrafas, os estudantes, que tinham anunciado antes “É meia hora” ou “Em meia hora”, mudavam para “ A hora é agora, celebrando: “É hora, é hora, é hora”, bordão ao qual passaram a juntar o nome do rajá. (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).

Mudemos nossa abordagem.

À vez primeira que ouvimos “...eles vão “ponhá”...” e tornamos a percebê-la em entrevista em fevereiro de 2013, pensamos, inicialmente, que se tratava de um mero e inocente descuido. Pois não o era. Os emissores, na situação primeira, no decorrer de nosso aprazível bate-papo, incidiram e o fizeram inocentemente, em incorreções do verbo “pôr”. Não nos cabia, e jamais o faríamos admoestações corretivas. Recomenda-se, no transcurso, reiterar a forma correta, insistentemente, até que seja percebida e ajustada à interlocução. O recurso pedagógico não atingiu os fins colimados.

Através de reportagens televisivas, destacando pontos turísticos, potencialidades rurais, usos e costumes, notamos que, vez por outra, sem que seja característica de habitantes da mesma região, a forma “ponhá” vem a lume - naturalmente na voz de quem foi privado de seguir o curso das águas.

Nossa curiosidade foi aguçada. Sejam reconhecidos e respeitados os regionalismos. Contudo, cremos que o gerador tenha roupagens sócio e neurolinguísticas. Se necessitarmos substituir o verbo “pôr”, usando “colocar”, empregaremos o preconizado, ou seja, o nome do verbo, também conhecido como infinitivo: “se eu colocar”. Assim o faremos com os verbos regulares, independentes da conjugação : “ se eu cantar” (1ª); “se eu escrever” (2ª); “se eu partir” (3ª). Permitam-nos a lembrança de que “colocar” é infinitivo (podendo ser pessoal ou impessoal); “colocando”, gerúndio; e “colocado” particípio; classificadas como formas nominais. Ouve-se também, referendadas incorretamente no uso do nome do verbo, as colocações: “se eu pôr”, “quando eu pôr”.

Cremos, salvo apreciação mais convincente, que tentamos regularizar um verbo que é totalmente irregular. O verbo pôr e seus compostos (compor, depor, impor, propor, repor, supor, etc.) pertencem à segunda conjugação. Pôr origina-se da forma latina “ponere” (vogal temática e). O verbo “pôr” e seus derivados eram classificados como da quarta conjugação. Porém uma reforma na nomenclatura gramatical brasileira e a portaria do MEC nº 36, de 28 de janeiro de 1959 determinaram que o verbo “pôr“ e seus derivados fossem classificados como anomalia da segunda conjugação. No português arcaico, dizia-se “poer” e alguns termos ainda contêm o ’E’ de “poer”: tu pões, ele põe, eles põem, poente, poedeira, etc.

Merecem especial carinho, nos verbos terminados em OR, as formas do pretérito imperfeito do subjuntivo: se eu pusesse, se tu pusesses, se ele pusesse, se nós puséssemos, se vós pusésseis, se eles pusessem. Examinemos também o futuro do subjuntivo: quando eu puser, quando tu puseres, quando ele puser, quando nós pusermos, quando vós puserdes, quando eles puserem.

Uma vez que estamos, também, destacando irregularidades verbais, cremos de bom alvitre, colaborando com os postulantes a concursos, inclusive ao ENEM, evidenciar os verbos em TER: conTER, deTER, manTER, reTER, susTER. Caso conjuguemos um verbo regular, terminado em ER, por exemplo corrER, comparemos, no indicativo, inicialmente, o pretérito perfeito. Eu corri, tu correste, ele correu, nós corremos, vós correstes, eles correram. Eu conti(v)e, tu conti(v)este, ele conte(v)e, nós conti(v)emos, vós conti(v)estes, eles conti(v)eram. A seguir, o pretérito-mais-que-perfeito do indicativo – Eu conti(v)era, tu conti(v)eras, ele conti(v)era, nós conti(v)éramos, vós conti(v)éreis, eles conti(v)eram. No subjetivo: pretérito imperfeito – “se eu contiver, tu contiveres, ele contiver, nós contivermos, vós contiverdes, eles contiverem; futuro – quando eu contiver, tu contiveres, ele contiver, nós contivermos, vós contiverdes, eles contiverem.

As contribuições e alterações metalinguísticas atingem números imensuráveis. O usual de hoje poderá não o ser de amanhã. Essa, sem dúvida, é uma das provas mais contundentes do dinamismo, não necessariamente correto, contrariando, em muito, correntes ortodoxas que primam pelo Português escorreito.

Respeitemos a liberdade criadora, mas não cheguemos ao ponto de creditar validade a um papagaio com venda, conduzindo um pirata no ombro.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - fevereiro de 2013

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 13/02/2013
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