Se for redonda, não desce!

SE FOR REDONDA, NÃO DESCE!

Confraternizávamos, efusivamente, comemorando a conquista de mais um natalício, bem como o retomada de atividades correlatas ao magistério, e eis que se repete, entre sorrisos fartos, com pitadas etílicas, o surrado e consagrado chavão: “é uma cerveja que desce...”. A mensagem publicitária, ainda que divulgada atentando aos padrões linguísticos, não ganhou, gramaticalmente, direito de cidadania. Ao contrário do que habitualmente acontece, a linguagem popular, respeitadas suas peculiaridades, assimilou apenas a essência, indiferente a particularidades.

A afirmação não foi, no todo, convincente, sorvida na integralidade. Talvez a proposta, por muitos des(a)percebida, atingiu seu escopo exatamente pela palavra impactante. Quanto ao nosso emissor, quem sabe por identificação com o substantivo feminino “cerveja”, sem tempo a reflexões, por automatismo ou temor a críticas, empregou-o, como o fazem tantos outros, a palavra “redonda”. Portanto: “a cerveja que desce redonda”. Convenhamos que a forma correta causa espécie, parecendo, a priori, não só a leigos, que claudica quanto à concordância nominal. Não foram poucos os que atribuíram erro aos mentores publicitários.

Trazemos como patrimônio gramatical, respeitadas excepcionalidades, que todas as palavras que se referem ao substantivo devem concordar com ele em gênero e número. Destarte, teremos: (1) Compramos uma cerveja gelada. (2) Adquirimos revistas pedagógicas. (3) Recebemos um aviso alvissareiro. (4) Enviamos as fotos coloridas. Consideremos a importância da presença do artigo, isto porque mostra relevância numérica em algumas assertivas: “Compramos uma cerveja gelada”, e “Compramos cerveja gelada”. No segundo exemplo não, necessariamente, ficamos restritos à aquisição de uma unidade.

Ao empregarmos “cerveja gelada”, gelada qualifica o substantivo cerveja, assim o sendo, é um adjetivo. Caso usássemos “cerveja redonda”, embora não conheçamos “cerveja quadrada” ou com outra forma, “redonda” seria, também, adjetivo, mas talvez não “descesse” de acordo com o propalado pelos veículos de comunicação.

Caso empregássemos “a cerveja que desce redonda”, redonda deveria aludir à cerveja e não ao modo como desce. Uma vez que temos “desce” (verbo), requer-se o emprego de um advérbio, ou melhor, palavra invariável (redondo), sem que seja circular. Se tivermos o plural, não haverá alteração: “cervejas que descem redondo”.

Um dos recursos que ratifica a palavra como advérbio será substituir redondo por outro advérbio: “cerveja que desce suavemente”; “cerveja que suavemente desce”; “cerveja que desce agradavelmente”; “cerveja que agradavelmente desce”, assim como “cerveja que redondo desce”. Evidencia-se a característica positiva do redondo, negando a outra forma geométrica a possibilidade de descer.

Se a redondo ou a redonda, como adjetivos (A mesa em que ceamos é redonda. /Os botões dessa camisa não são redondos.), acrescermos o sufixo mente, teremos o advérbio redondamente – liberta-se da forma geométrica, como acontecera em “cerveja redondo” e assume os significados: abertamente, categoricamente, claramente, completamente, francamente, integralmente, rotundamente, totalmente,... Tornam-se inviáveis as colocações: A mesa em que ceamos é redondamente. /Os botões dessa camisa não são redondamente./ Com acerto, empregamos: ...redondamente enganado, ...enganou-se redondamente, ...redondamente frustrado, decepcionado, errados, ...falharam, negaram, pecaram, enganaram-se, fracassaram, equivocaram-se redondamente, (inviável o emprego de redondo, mesmo que seja advérbio). Poderemos consignar: Eles estão redondamente felizes/ ... redondamente certos/ ...estão felizes redondamente. Talvez por eufonia prefira-se: ...estão completamente felizes, assim como: condenamos redondamente (completamente)o assassino. Uma vez que o correto é: “ ...cerveja que desce redondo.” por que não empregamos “...cerveja que desce redondamente”? Eufonia? Temor ao ridículo? Valemo-nos de outro advérbio involuntariamente?

Nos processos de formação de palavras, identificamos: derivação e composição. No primeiro, encontramos: a)prefixal (desleal), b)sufixal (chaveiro), c)prefixal e sufixal ou parassintética (entardecer), d)regressiva ou deverbal (Ninguém suporta seu mau cheiro – verbo cheirar), e e)imprópria: processo a que dedicaremos especial carinho. No segundo, a)justaposição (girassol), e b)aglutinação (planalto).

Canalizemos, portanto, nossa atenção à derivação imprópria, ou seja, quando uma palavra muda de classe gramatical, sem alterar sua forma. Tomemos como exemplo: Os professores mesmos resolveram o impasse./ As professoras mesmas resolveram o impasse. [Percebe-se que mesmo concorda com a palavra a que se refere, logo é pronome]. Os professores resolveram mesmo o impasse./ As professoras resolveram mesmo o impasse. [Nota-se que mesmo equivale a realmente, é invariável, logo, advérbio].

A derivação imprópria pode ser detectada num considerável número de palavras. Enriqueçamos esse segmento: Albino ficou conversando bastante tempo (muito). Luís adquiriu bastantes livros (muitos). Percebe-se que havendo concordância com o substantivo a que se refere, temos pronome. Uma vez invariável, será advérbio. Marcos e Osmar estavam bastante felizes (muito). Reafirmemos: Somos bastante amigos (advérbio). Somos amigos o bastante (suficiente). Temos bastantes [muitos] amigos (pronome).

Ampliemos nosso horizonte. Observemos: Eliézer tomou duas meias garrafas de vinho./Esse pacote de farinha pesa apenas meio quilo. Classifica-se como numeral: meio -equivale à metade. Se meio equivaler a um pouco, será advérbio, tornando-se, como temos insistido, palavra invariável: Ela está meio preocupada. /As informações estão meio defasadas.

Muito frequente é o emprego de: Andei tão rápido que estou meia cansada./ Elas chegaram meia cansadas. O cansaço estará no lado esquerdo? direito?, parte superior?, inferior?, por dentro? por fora?, ou quem sabe somente uma metade do corpo sofreu desgaste? Ouve-se igualmente: A porta está meia aberta. Para que assim o fosse, teríamos uma esquadria, tão comum na zona rural, fixada na cozinha, seccionada em duas partes, tendo uma das metades aberta. Poderíamos então dizer meia porta está aberta. Caso contrário, teremos: A porta está meio aberta (uma parte, um tanto). Consideremos que uma vez a porta estando parcial ou totalmente aberta, bastará dizer que: A porta está aberta. Ilustre-se igualmente com: As moças rápidas chegaram à festa (adjetivo). /As moças chegaram rápido à festa (advérbio).

Ainda passível da mesma analise, vamos encontrar: Só um aluno entregou o trabalho./ Só dez alunos entregaram o trabalho. A substituição por apenas, somente, ratifica que a palavra é invariável, ou seja, advérbio. Contudo: Um aluno entregou o trabalho só ./ Um aluno só, entregou o trabalho. /Dez alunos entregaram o trabalho sós. /Dez alunos sós, entregaram o trabalho. Nota-se a viabilidade de substituição por sozinho(s), logo, adjetivo. Consideremos, ainda o emprego da locução a sós: O aluno ficou a sós na secretaria. /As alunas ficaram a sós na secretaria. Atentem à importância da vírgula: Só, um paciente compareceu ao ambulatório./Só um paciente compareceu ao ambulatório. /Um paciente compareceu só, ao ambulatório. /Um paciente compareceu só ao ambulatório.

Ao falarmos em flexões número-genéricas, o advérbio é classificado como invariável. No entanto, ainda que raros, encontramos: Os professores chegaram cedinho. /Quase todos os alunos da última série moram pertinho.

Retomando as considerações iniciais, se persistirem dúvidas “na cerveja que desce redondo”, o ministério da cerveja recomenda: troque de marca, opte por outra bebida, ou se mantenha abstêmio.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - março de 2013

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 10/03/2013
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