O português da tevê

- O senhor faz entrega em domicílio?

- Não, senhôra, não faço.

- Minha vizinha falou que o senhor faz.

- Eu fazia entrega a domicílio, senhôra, não faço mais.

- Por quê?

- Fui proibido.

- Quem proibiu? Ninguém pode proibir uma coisa destas!

- As circunstâncias proibiram, senhôra, está impossível, olha, tenho permissão para vender a domicilio, mas não posso entregar a domicilío, é impossível.

- Impossível? Como?

- É para entregar aonde, senhôra?

A televisão que estava ligada raspou a goela e o merceeiro, com medos de fecharem seu negócio, corrigiu-se:

- É para entregar em onde, senhôra?

- Na praça São Carlos,

- É sua casa, seu domicílio?

- É!

- Bem, eu fazia entrega a domicílio, meu caminhão saía daqui e ia de uma casa a outra fazendo entregas e, de repente, alguém na tevê tocou a flauta de Hamelin proibindo entrega a domicílio...

- Mas é para entregar em meu domícilio!

- Minha senhôra, eu tenho muitos fregueses, se eu fizer para a senhôra terei de fazer para todos... O gasto não compensa.

- Como assim?

- Olha, dona, se meu motorista sai daqui com sua compra e faz a entrega em seu domicílio, volta aqui e sai para fazer a entrega no domicílio de outro freguês, volta e sai de novo para fazer a entrega em outro domicílio, não rende, tenho muitos fregueses, os últimos só receberão suas compras em um mês, e olhe lá! Se meu motorista não pode sair daqui com todas as compras e fazer entregas a domicílio, não posso mais fazer entrega de domicílio a domicílio, portanto, não posso fazer entrega em domicílio! Me dá prejuízo, e não estou aqui para correr atrás de prejuízo.

Calou-se um instante e matutou, "estou errando de novo? Bem, devo estar certo, não estou falando de futebol", mas a voz estridente da madame fere seus ouvidos.

- Mas seus concorrentes fazem a entrega em meu domicílio...

- A senhôra veja o que é a propaganda: ao freguês toda a satisfação, mesmo enganando-o!

- O senhor está fazendo acusação leviana... Ninguém me engana quando entrega minhas compras em meu domicílio.

- Senhôra, o que todo mundo faz é colocar todas as compras, de todos os fregueses, em um caminhão e ir de domicílio a domicílio fazendo entregas. Eles dizem que estão entregando em seu domicílio, e estão! Só que para entregar em seu domicílio, eles fazem entrega a domicílio, e quando chegarem à porta do seu e a senhôra não estiver, a senhôra fica sem receber sua mercadoria! Eles fizeram entrega a domicílio, mas não entregaram em seu domicílio! Entendeu?

- Entendi. O senhor não está fazendo entrega em domicílio porque não pode fazer entrega de domicílio a domicílio... Porque o senhor não faz entrega de domicílio em domicílio e entrega no meu minhas compras?

- Impossível convencer o meu motorista... Ele não consegue ir de um lugar em outro, já tentou, mas o caminhão é velho demais para estas coisas, nunca se conformou de tirarem o chapeuzinho do êle, diz que enxugaram tanto o húmido que se desgastou e virou úmido, agora, por pirraça, teima em só ir de um lugar a outro.

- O senhor está complicando demais as coisas.

- Não, minha senhôra. Tudo é culpa da economia. Antigamente, o comércio colocava uma placa "entregamos de domicílio a domicílio", depois passaram a pintar apenas "entregamos a domicílio", que ficou "entrega a domicílio" na placa do meu armazém que me fizeram mudar. Todos faziam entregas a domicílio e funcionou durante séculos! A carrocinha entregava leite a domicílio e ninguém reclamava! Daí, algum leitor de placas alheias não gostou dos dizeres "FAZEMOS ENTREGA A DOMICÍLIO", cismou que estava errado e mandou seus lacaios corrigirem... E ‘tá ganhando dinheirão com isto até hoje!

- O senhor não está entendendo nada de português!

- Eu!? Eu ando a cavalo, senhôra, os burros é que andam de cavalo e daqui a pouco vão começar a andar a ônibus! E vem a senhôra dizer que eu é quem estou errado! Eu não aprendo a falar com a televisão, aprendo em preto e branco e nos livros!

Ora pois pois.

(ESCRITO EM 02/2008)

Gilberto Profeta
Enviado por Gilberto Profeta em 20/06/2013
Código do texto: T4350396
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