DANDO NÓ EM PINGO D'ÁGUA

DANDO NÓ EM PINGO D’ÁGUA

Consultas a oráculos, ciganas ou cartomantes não iriam minimizar as inquietações matemáticas, expressivas e constantes, de Renato. Previsões e vidências, visualizadas à ’bola de cristal’, por certo, também ficariam à margem de suas limitações e carências. Procurava, sorrateiramente, às vésperas de provas, ‘encher a bola’ dos professores, conquistando, de alguns, suspeitos favores. Preocupava-se apenas com o ter, jamais com o saber.

O garoto não perdia uma só oportunidade para engendrar presepadas. Advertências, censuras ou conselhos, não o impediam de tornar-se inoportuno. Dirigia gracejos e galanteios, ousados e inconvenientes, crendo-se estar com a ‘bola toda’. Ante a recusas, argumentava, por despeito, que não ‘daria bola’ a meninas vulgares. Sentava-se, estrategicamente, no fundo da sala: raramente seria arguído. Quando o era, nem a perguntas primárias conseguia articular respostas maduras e satisfatórias. Fora apelidado de ‘bola fora’. Ficava irado, algumas vezes foi à forra e os críticos conheceram o vigor de seus punhos. A aba de um boné encobria-lhe os olhos. Por vezes, um capuz encapotava o boné. Um único caderno, farto em orelhas, registrava, desordenadamente, em meia dúzia de folhas, futurísticos desenhos e esparsas anotações. Os livros, esporadicamente eram abertos e manipulados. Este cenário não excluía esta ou aquela disciplina.

Inquirido a respeito de sua conduta e rendimento, justificava-se com respostas evasivas, e afirmava que ascenderia a patamares expressivos com a música sertaneja ou com o futebol. Citava, sem hesitar, o nome de seus ídolos. Estudaram? Não. E por que ele deveria fazê-lo? Pressão familiar? Rindo, acreditava que as opções seriam ‘bola dentro’. Embora algum esforço nos esportes, não evidenciava talento. Por algum tempo ‘baixava a bola’, mas num átimo voltava ao antropocentrismo. Temia-se o envolvimento com drogas. Não chegaram à comprovação.

Os pais, mesmo cientes, pouco podiam fazer. Trabalhos braçais tomavam seus dias, e não reuniam condições culturais para mudar o curso do rio. Punições severas e agressivas, aplicadas pelo pai, não surtiram efeito, e os responsáveis eram chamados, com frequência, à escola. Perguntavam-se: “A quem esse guri saiu?” Sabendo ou não, restava ‘passar a bola’ ao colégio. Confiavam que não fosse ‘ruim da bola’. Renato, indiferente às queixas, não ‘dava bola’ às acusações. De qualquer sorte, os professores deveriam educá-lo, alimentá-lo, levá-lo ao berço e quem sabe ensiná-lo. Não seria deficiência visual? Os exames revelaram normalidade. Seria ‘virado da bola’? ou como se diz no Sul ‘bola sem manicla’.

Chegara à sétima série, acobertado pelo ’paternalismo’ educacional. Se o aluno é reprovado, a culpa recai sobre o professor. Os educandários, antes da qualificação, preocupam-se com a quantificação. Conseguia razoáveis resultados nos trabalhos em grupo: escorava-se nos colegas. Às aulas de reforço, só comparecia não tendo aonde ir. Motivos banais privavam-no das aulas.

Alguns professores, quer para evitar incômodos, quer acreditando em recuperação, passavam a mão por cima ou faziam vistas grossas, deixando de assumir postura corretiva. Toleravam comportamentos que feriam a ética e a educação, assim como se mostravam indiferentes a baixos rendimentos. Atribuíam-lhe excessiva valoração a fim de que a média fosse atingida. Colaboravam, desta sorte, maciçamente, para que ele ‘pisasse na bola’. Tanto anos de escola para um patrimônio tão parco.

Quarta-feira, turno matinal de um longínquo novembro. Dois últimos períodos, aula de Matemática. Revisão à prova final a ser realizada na sexta-feira próxima. Dona Leonilda, exigente e conceituada professora, orientava o grupo. Sempre fora inflexível com alunos relapsos, contudo jamais se negara a explicações, mesmo fora de seus horários, em especial aos que demonstrassem desprovimento.

Renato, pela vez primeira, mostrava-se preocupado. Se não alcançasse a aprovação, fato inédito, deixaria de viajar à Santa Catarina com os colegas de turma. Ficaria com a ‘bola murcha’. A excursão, a pontos pitorescos, com a supervisão da professora Maria de Fátima, orientadora, tornara-se o prêmio aos alunos aprovados. Dois anos antes, tradicionalmente, começavam a participar de eventos: venda de merendas, ação entre amigos, banquinhas em quermesses.

Terminada a revisão, a querida mestra inquirira a respeito de eventuais esclarecimentos. Ouve-se a sirene determinando o término do período. Muitos já estavam com a mochila pronta, a um passo da porta. Rapidamente cada um queria ser o primeiro a chegar à rua. Algumas meninas permitiam-se, a despedida à educadora, com um carinhoso beijo. Nessa época, ainda havia fortes vestígios de educação e respeito. Um dos últimos a deixar a sala: Renato. Morava perto da Escola, sentava-se ao fundo, perto da janela. Pouco sabia, nada perguntara.

Dona Leonilda, habitualmente, colocava sobre a mesa central dois ou três livros, cadernos de chamada, pesquisas, folhas de exercícios, cartazes, um esquadro de madeira, estojo com lápis e canetas, e uma bolsa preta, de porte médio. Ao sair da sala, antes dos dois ou três últimos alunos, sem que percebesse, deixara cair uma pequena folha. Inicialmente não despertou a atenção a não ser de Renato. Os outros, um menino e uma menina não chegaram a perceber. A folha teria ficado no chão não fora a curiosidade de Renato.

Apanhou-a, com a intenção de entregar à professora, e desta forma, provavelmente, obter alguma pista sobre a avaliação. Só que dona Leonilda era dona Leonilda: sem um milímetro a mais nem a menos.

Renato interou-se, cuidadosamente, do conteúdo, percebendo que se tratava das respostas uma prova de 15 questões. Quatro apresentavam o início de expressões algébricas: um dos conteúdos revisados. Emudeceu, ficou petrificado, perdera a cor, dificuldade de respirar. ‘Ora bolas’, por que devolver? Era o gabarito da prova de sexta-feira: a redenção. Estaria aprovado. Poderia participar da viagem a Santa Catarina. Provaria que era capaz de obter bons resultados, ‘dando tratos à bola’.

Sexta-feira, turno matinal de um distante novembro. Prova de Matemática, professora Leonilda. Para quem havia estudado, bem equilibrada, como sempre o fora: sem armadilhas, pegadinhas, surpresas, exigia, prioritariamente, raciocínio. A quem não se preparara, um desafio.

Dois alunos foram trocados de lugar: suspeição de favorecimento. Se bem que, a vigilância constante, inibia qualquer tentativa fraudulenta. Renato estava tão senhor de si que pediu para sentar-se mais próximo da frente. Provas entregues, tempo para desvirá-las, 15 questões. Qualquer material suspeito ou atitude comprometedora levaria à tomada da prova. Restrição também a maquinas calculadoras e celulares.

A avaliação exigia concentração. O uso do boné fora proibido. Somente ruídos externos quebravam o silêncio do mosteiro. Os monges estavam em meditação. Alguns procuravam inspiração no teto da sala: quem sabe as lâmpadas iluminariam ideias obscurecidas? Outros tantos acreditavam que, mordendo o lápis, descortinariam a complexidade dos cálculos.

Renato tomou providências: transcreveu os dados em outra folha, codificou palavras e números, de tal sorte que, se apanhado, não configuraria ato ilícito. Ardilosamente ocultou-a sob a prova. A olhadas furtivas, confiante, assinalava as opções. Algumas questões exigiam desenvolvimento. Como fazer? Só dispunha da optação. Misturou cálculos desconexos, como se estivesse desmembrando variantes de um novo e ousado postulado matemático. Intencionalmente assinalou duas letras que se diferenciavam do original. O que diriam se acertasse 15 questões em 15? Por certo levantaria suspeitas. Não haveria recuperação se não alcançasse setenta por cento da prova. Revisou-a cuidadosamente, não podia ‘trocar as bolas’, como afirmava.

Quase ao término do segundo período, entregou a prova. ‘Bola pra frente’ A sorte estava lançada.

Semana seguinte, retorno das avaliações. Não conseguia acreditar: fora reprovado. Como contestar? E o gabarito? A prova fora modificada? Seria ele a ‘bola da vez’? Punição a quem não estuda?

Por mera coincidência, a folha encontrada, consignava respostas que se identificavam com a prova, realizada no mesmo dia, pela outra sétima série.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - outubro/2013

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 17/10/2013
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