GÊNERO REAL x GÊNERO GRAMATICAL

GÊNERO REAL X GÊNERO GRAMATICAL

CATEGORIAS GRAMATICAIS

Pode-se conceituar flexão como o conjunto das categorias gramaticais típicas para enquadrar internamente a palavra em gênero e número (flexões nominais) e em pessoa, modo, tempo e número (flexões verbais). Muitos, e me incorporo aí, não incluem o grau como flexão nominal por ele ser indicado por sufixos e não por desinências. Diz-se internamente porque as flexões são aplicadas diretamente no final da palavra, através de desinências, enquadrando-a numa característica ou categoria típica. Ressalte-se a exceção da palavra QUALQUER, cuja variação ocorre no meio, porque é formada pelo pronome QUAL mais o verbo QUERER e só o pronome varia. Como ele vem antes do verbo, a flexão ocorre nele, QUAISQUER. Por isso essa posição diferente da flexão. As demais palavras flexionam-se no seu final.

No entanto, há enquadramento externo, provocado por concordância, como ocorre em “Cebola é ótimo para temperar comida”, em que o adjetivo ‘ótimo’ remete ao gênero neutro do substantivo ‘Cebola’. Esse substantivo aí é neutro por ser assexuado e não vir modificado por nenhum determinante nessa frase. Basicamente são considerados determinantes três dos quatro súditos do substantivo: artigo, numeral e pronome.

OS DETERMINANTES

Esclarecendo melhor: o imenso reino dos nomes basicamente é formado por substâncias e qualidades. Substância é aquilo que existe e subsiste por si próprio. Portanto, independe de outros seres. Toda substância requer um nome, o substantivo. Já as qualidades não existem por si mesmas, precisam da substância para sua existência.

Assim, uma mesa, formada por determinado tipo de matéria, existe por si própria e até pode ser contada, mas, por exemplo, a qualidade ‘redonda’, como distintiva dela, não existe por si só, ou seja, a ‘redondeza’ depende de uma substância para existir. Em ‘mesa redonda’ há, pois, uma substância (substantivo ‘mesa’) e uma qualidade distintiva (adjetivo ‘redonda’).

Enfatize-se esse caráter distintivo do adjetivo, motivo de sua nobreza no reino dos nomes. O “redonda”, além de qualificar e caracterizar, distingue essa mesa de outra mesa, quadrada, retangular, hexagonal. É o adjetivo restritivo. Diferente do adjetivo explicativo, que, embora mantenha a força qualificativa, não tem esse papel distintivo, como ocorre em “gelo frio”, já que todo gelo é necessariamente frio. Não há gelo quente, gelo meio quente, etc. Essa classificação real do adjetivo em restritivo e explicativoacabou restringindo-se às orações subordinadas adjetivas, na gramática normativa. Mas, de fato, ela existe nos adjetivos em geral, não interessa se em palavras ou orações.

Quando a qualidade ganha status de nome (redondo > redondeza) vira um substantivo abstrato, que, como as qualidades, não tem existência própria nem pode ser contado. Aliás, os substantivos abstratos derivados de adjetivos são grafados sempre com o sufixo EZ ou EZA: belo > beleza; limpo > limpeza; ácido > acidez; claro > clareza, etc.

Já os artigos, os numerais e os pronomes não apresentam essa força qualificativa e distintiva típica dos adjetivos e subordinam-se aos substantivos apenas individualizando-os ou generalizando-os (artigos definidos e indefinidos); quantifi-cando, posicionando, dividindo ou multiplicando-os (numerais); apontando, relacionando, substituindo-os, etc. (pronomes).

Por não terem esse papel qualificativo nem distintivo, auxiliam o substantivo apenas enquadrando-os na sua espécie, um sintagma nominal. São os determinantes. Enfim, hierarquicamente, um adjetivo é mais do que um artigo, um numeral e um pronome, porque o adjetivo pertence por essência ao reino dos nomes e até pode gerar substantivos abstratos. Nesse sentido, adjetivo é uma espécie de hiperônimo dentro do qual seus irmãos hipônimos ─ artigo, numeral e pronome, os determinantes ─ se enquadram, todos à disposição do substantivo.

CLASSES GRAMATICAIS

As palavras de nossa língua são distribuídas em dez classes gramaticais, quatro delas sem categoria gramatical alguma, o que quer dizer sem qualquer variação ou flexão indicativa de gênero, número, etc.: preposição, conjunção, advérbio e interjeições. São, portanto, palavras naturalmente invariáveis.

As outras seis classes são divididas em dois grupos, um relacionado aos nomes ─ substantivo, adjetivo, artigo, numeral, pronome ─; outro relacionado ao que acontece ─ verbo e advérbio. No primeiro grupo, dos nomes, todas as palavras apresentam variações internas, para adequação às categorias: número e gênero; no segundo grupo, só o verbo sofre variações, que o enquadram em pessoa, número, etc. O advérbio, como já vimos, é palavra invariável.

Essa categorização interna, isto é, a variação no final da própria palavra, é normalmente feita pelas chamadas desinências, partículas insignificativas colocadas no final dos vocábulos para indicar-lhes o gênero, o número, a pessoa, etc. Ou seja, as desinências indicam as flexões das e nas palavras.

SUFIXOS X DESINÊNCIAS

Não devemos, pois, confundir desinências com sufixos. Os sufixos são elementos formadores de novas palavras; as desinências apenas enquadram as palavras em categorias: masculinas, femininas, singular, plural, etc. Muitas vezes, diga-se, a desinência aparece embutida no próprio sufixo, como na palavra “enfermeira”, na qual esse “a” final se infiltrou no prefixo “eiro” para levar a palavra a

o feminino.

O BÁSICO

Basicamente, a desinência O categoriza o masculino; o A, o feminino; o S, o plural; o MOS, a primeira pessoal do plural, etc. Mas nem todo substantivo terminado em A é feminino, como planeta, mapa, etc. Aliás, essas palavras já foram femininas na língua. E também nem toda palavra terminada em O (átono, tônico ou reduzido) é masculina, como tribo, avó, etc.

O GÊNERO PROPRIAMENTE DITO

Gênero é a propriedade taxonômica que os substantivos têm de se enquadrar como macho ou fêmea. Isso quer dizer que, em princípio, só os substantivos que designam elementos providos de sexo podem ser classificados como masculino ou feminino. Isso é gênero real, ou seja, atrelado ao sexo.

“Todos os mais seres que não tem sexo algum, deveriam ser arranjados na classe ou genero neutro, isto é, formarem todos uma terceira classe, em que entrassem os nomes dos individuos e das coisas que nenhum sexo tem, nem masculino nem feminino.” (Jeronymo Soares Barbosa, in Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, Typographia da Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1866, p. 81)

“Porem o uso das Linguas, sempre arbitrario ainda quando procura ser consequente, vendo que a natureza lhe tinha prescripto a regra dos sexos na classe animaes, quiz seguir tambem a mesma nos nomes das coisas que os não podem ter, fazendo por imitação uns masculinos e outros femininos,...” (Idem, ibidem)

GÊNERO NEUTRO

Não há oficialmente o gênero neutro em Português. Porém, existe de fato esse gênero neutro em palavras muito usadas, especialmente os pronomes como ISSO, ISTO, AQUILO, ALGUÉM, NINGUÉM, etc. Não aceitar o gênero neutro, como se diz popularmente, é malhar em ferro frio, pois um substantivo que designe um ser desprovido de sexo é neutro e só ganha gênero gramatical quando lhe acrescentamos um determinante. Esse gênero ganha consagração e o substantivo acaba sendo enquadrado como masculino ou feminino.

Porém, mesmo com o gênero gramatical já consagrado, caso não lhe incorporemos um determinante, ele permanece neutro, como na seguinte frase: “Segundo os que bebem, cerveja é ótimo como diurético!”. Por que “ótimo” e não “ótima”? Simplesmente porque o substantivo “cerveja” é neutro quando desacompanhado de determinante. E o adjetivo na forma neutra é semelhante ao masculino. É por isso também que se diz “É proibido entrada!, para ficarmos com uma frase corriqueira, na qual o adjetivo “proibido” está na forma neutra concordando com a forma neutra do substantivo “entrada”.

Isso quer dizer que o gênero de seres assexuados é meramente aleatório e gramatical, uma questão cultural, como provam as diferenças entre línguas basicamente originárias da mesma fonte, caso da nossa e da língua castelhana. Assim, são masculinas em castelhano palavras como ‘viaje’ (viagem), ‘lenguaje’ (linguagem) ‘origen’ (origem), ‘color’ (cor), ‘orden’ ─ no sentido de série, disposição, organização ─ (ordem), todas femininas para nós. ‘Sangue’ é masculino em português e feminino em castelhano (la sangre). Os nomes das letras são masculinos em português e femininos em castelhano: o O, la O.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, o que se pretendeu com este ensaio foi mostrar que há um gênero real e um gênero gramatical, ou seja, dos seres providos ou não de sexo.

Porém, há também substantivos que nomeiam seres sexuados que receberam gênero aleatório. São os epicenos, palavra de origem grega que significa “possuído em comum”, que se referem exclusivamente a animais, assim chamados pela dificuldade de identificação sexual, classificados como se fossem objetos. Nesses casos, indicamos-lhes o sexo (e não o gênero) através das palavras “macho” ou “fêmea”.

Já os substantivos sobrecomuns, que se referem exclusivamente a pessoas, apresentam gênero fixo (masculino ou feminino), independentemente dos seres que representam. Assim, pessoa é feminino, referindo-se a homem ou a mulher, tanto quanto indivíduo é palavra masculina. E os comuns-de-dois, também exclusivos das pessoas, apresentam forma escrita fixa, mas a variação sexual é indicada por determinantes e adjetivos: estudante bonito, estudante bonita; o dentista, a dentista.

A falta de sexo e a analogia são complicadores para algumas palavras. Grama, referindo-se a peso, é masculina, mas a analogia com a grama relva faz o povo tratá-la como feminina. Já a doença ‘o cólera’, redução de ‘cólera-morbo’, era masculina, porém a analogia com ‘cólera’, ira, feminina, fez confundir o gênero daquela, hoje indiferentemente masculina ou feminina: “Ele contraiu o/a cólera em Cuba”.

Que fique claro, pois, que o gênero de seres assexuados surgiu por imitação, aleatório e deve-se à cultura de cada país.

Prof. Leo Ricino Mestre em Comunicação e Letras – professor na Fecap – Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado e instrutor na Universidade Corporativa Ernst & Young

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 25/10/2013
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