INFIDELIDADE NO POLEIRO

INFIDELIDADE NO POLEIRO

A homens, dados a múltiplas aventuras amorosas, concomitantes ou não, além da pecha de conquistadores, que às vezes os envaidecem, atribuem-se, em especial, dependendo do enfoque econômico, histórico e cultural, bizarros adjetivos, lisonjeiros e ou pejorativos, e por vezes ilógicos.

Qual a adjetivação atribuída a alguns dos mais renomados galanteadores? Recorremos à historicidade, e nos fundamentamos na concretude vivencial ou nos arrebatadores enlevos ficcionais. Deixamos à margem, dentre outros, líderes políticos, religiosos e potentados étnicos.

Os pesquisadores, na maioria, manifestam-se em favor de que o primeiro conto a registrar a história de Juan foi El burlador de Sevilla y convidado de piedra (“o conquistador de Sevilha e o convidado de pedra”). Don Juan é um mulherengo inveterado, barato, concupiscente, cruel que buscava apenas a conquista e o sexo. Mesmo que a linguagem textual não o crucifique, alguns críticos foram-lhe impiedosos. Valeram-se de adjetivos corriqueiros, banais e agressivos. Don Juan seduzia as mulheres disfarçando-se de seus amantes, ou lhes prometendo o matrimônio. Um rastro de corações partidos levava ao leito lágrimas, sussurros e saudades. Alguns críticos, no entanto, benevolentes, o justificam, afirmando que ele efetivamente amava as mulheres, sendo verdadeiramente capaz de encontrar a beleza interior do sexo feminino. Crê-se que ainda seja a personagem de maior evidência na galanteria.

Voltam-se nossos olhos ao irresistível sedutor: Giacomo Casanova, abril de 1725, Veneza. Desfrutou de uma vida apaixonante. Uma aura mágica envolve a sua vida de debochado, libertino, colecionador de mulheres, escroque e conquistador empedernido. Seus censores não economizaram adjetivos malediscentes. Casanova percorria os bordéis de Londres para ter relações com mais de 60 meretrizes.

Conseguira fugir das masmorras do Palácio Ducal de Veneza: feito rocambolesco. Fora preso por levar uma vida dissoluta. Turbulento, buliçoso e agitado por uma inquietação que jamais o abandonou em 73 anos de vida, este sedutor em movimento perpétuo passa grande parte de sua vida em viagens por Avinhão, Marselha, Florença, Roma, Praga, São Petersburgo, Istambul e Viena. É recordado pelas suas inumeráveis histórias galantes. Casanova diz ter dormido com 122 mulheres ao longo da vida.

E como não citar Manuel Maria Barbosa du Bocage? Um dos nossos melhores poetas, e depois de Camões o mais popular e celebrado (1765-1805). Amores, os teve e muitos. No Brasil os vivenciou. Escreveu à Gertrúria, confessando que a eles resistira, por certo um ardil ao prestar contas à mulher amada. As damas que julgava requestar constituiam o seu pensamento único. Confiando nos seus dotes , estava tão certo de agradar às belas que notava a resistência de alguma que porventura se esquivava aos seus galanteios. Confiava no aplauso unânime que obtinha ao recitar os seus versos. Gertrúria é sua namorada e, depois cunhada. Gertrudes Eça não seria a última paixão de Bocage. Marília, como Ritália, corresponde a Maria Margarida Rita. Alguns ajuizadores a apontam como a sua maior paixão. Nise aparece em alguns dos seus sonetos, alternando com outros como Anarda, Anália, Armia, Filena e Márcia. Em 1790 aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, adotamdo o pseudónimo Elmano Sadino.

O Bocage oficial, dos livros e professores, é o avesso do Bocage popular. Para os mestres, é um poeta sublime, herdeiro direto do soneto camoniano e a quem a fama de boêmio e a tradição da poesia erótica só fazem comprometer. Para outros é um mito: acoberta tudo que de pornografia e libertinagem corre pelo anonimato.

Não poderíamos ficar indiferentes a “Um Certo Capitão Rodrigo”, uma das narrativas que integram O Continente, primeira parte de O Tempo e o Vento, romance épico sobre a história do Rio Grande do Sul escrita por Érico Veríssimo. Nosso escopo é essencialmente a adjetivação à personagem. Narra a história do capitão Rodrigo Cambará, a esposa Bibiana Terra, neta de Ana Terra. O capitão, aventureiro destemido e bonitão, chega a Santa Fé. Hospeda-se na casa de Nicolau, comerciante, cuja esposa, Dona Paula, foi a primeira a ceder a seus encantamentos. Honorina, neta de Paraguaia, amante indígena, conhecera também o vigor dos braços do peleador. Rodrigo gastava em jogos e bebida, além de pensar continuamente na mulher que teve durante sua viagem e fazer visitas a outras tantas. Espande seu carinho a Helga Kunz, moça muito bonita que não conseguira resistir ao assédio do conquistador.

O capitão Rodrigo fugiu para não ser preso como o sogro. Bibiana ficou esperando pelo retorno do marido por muito tempo, sempre conformada com o destino dele. Chega a notícia de que a tropa de Rodrigo Cambará estava se aproximando da cidade para lutar contra o coronel Ricardo Amaral Neto e sua família. Bibiana resolveu esperar o marido em casa, mesmo sabendo do riscos que corria.

Rodrigo e Bibiana se viram por alguns instante, depois ele voltou para o ataque a casa do Amaral. Na manhã seguinte, chegou a notícia de que Bento Amaral tinha fugido, mas que o coronel Ricardo Amaral Neto e o capitão Rodrigo estavam mortos. Depois do óbito do marido, Bibiana continuou morando na casa onde foi feliz com ele e cuidou dos filhos, Bolívar e Leonor.

Em nossos dias, em se considerando a linguagem desprovida dos melhores padrões linguísticos, por vezes retratanto com mais riqueza a alma do povo, encontramos uma colocação que nos leva à incompreensão: ‘ele é um galinha’.

Como se sabe, nossos substantivos podem ser do gênero masculino ou feminino; ter a mesma forma para o masculino e feminino (o colega – a colega), denominados comuns de dois gêneros; designarem pessoas, referindo-se ao homem ou à mulher (a testemunha), classificados como sobrecomuns; substantivos que se diferenciam quanto ao significado, considerando o artigo masculino ou feminino (o cabeça – a cabeça; o cinza – a cinza; o grama – a grama). Outros tantos só são empregados no singular, e alguns somente, no plural.

O substantivo ‘galinha’, incontestavelmente, exige artigos, pronomes, numerais, adjetivos femininos. De pronto, visualiza-se na agregação (um galinha) anomalia lingüística, mas... Recorre-se à comparação, figura de linguagem, bastante usual em nosso idioma. Entretanto, a concordância é irregular.

A comparação parece-nos ilógica. Valendo-nos de compêndios que discorram a respeito do universo galináceo, sabe-se que os galinheiros, viveiros e criatórios, em média, dispõem de apenas um galo para quinze ‘galinhas’. A presença de mais de um galo leva-os a constantes atritos pelo domínio do território. Assim sendo, reserva-se ao ‘galo’ e não à ‘galinha’ a multiplicidade de conquistas e parceiras.

A ‘galinha’, mesmo que quisesse, não teria como ser coberta por outro ‘galo’ que não o soberano em seu reduto. Note-se que quando criadas fora dos limites do galinheiro, no terreiro, a presença de mais de um ‘galo’ é motivo de pugnas, o que não ocorre com as ‘galinhas’.

Se nos valermos da expressão “este homem é um ‘galo’ ”, afasta-se, por completo, a ideia somente de conquista (garanhão), de infidelidade, e atribui-se igualmente honras de bravura. Talvez até associadas às contendas dos rinhadeiros. A altivez e o canto revestem-no com o escudo, o elmo e a lança dos guerreiros medievais. E o homem, por extensão, é o centauro imbatível. Machismo?

Percebe-se que o julgamento moral pode levar o ‘boa pinta’, ‘dândi’, ‘janota’, ‘galante’ , ‘frajola’, ‘sécio’, ‘casquilho’ a ‘calhorda’, ‘pelintra’, ‘pulha’, ‘peralvilho’ ‘peralta, ‘garrido’, ‘safado’, conquistador barato, sedutor incorrigível, contudo a ‘um galinha’, parece-nos ilógico.

A colocação, além do referendado, encontra abrigo, mais uma vez, creditando pluralidade sexual às ‘galinhas’ numa jocosa citação em que a comparação manifesta-se atribuindo às “penosas” vínculos familiares: nossas estimadas ‘primas’.

Cremos que, respeitados os desejos populares, independentes da lógica ou da razão, não podemos fazer vistas grossas ao comportamento do ‘galo’ e da ‘galinha’ já que se condiciona a um problema de ‘postura’.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - fevereiro de 2014