“QUE” e “SE”, os grandes Capitães do Navio

“QUE e “SE”, Os grandes Capitães do Navio

No processo de ascensão aos elevados patamares do nosso idioma, existem degraus que apesar de estarem na base, nos levam direto para os cumes mais altos dessa escalada. O “Que” e o “Se” são o que há de mais fundamental e básico dentro do português. Todavia sem a exata compreensão dessas pequenas entidades dentro do idioma, a bem da verdade, não precisamos nem de tecer esforços no sentido de nos aventurarmos dentro do universo da gramática. Estaremos, como se diz no popular, literalmente no “sal”.

Noutra oportunidade, falei sobre quando se alcança o estado civilizatório ao tomar consciência da palavra “A”. A gente deixa de ser selvagem para entrar num mundo que até então era completamente obscurecido pela ignorância. Entretanto, quando se acende uma pequena lanterna na escuridão, descobrimos que além de um caminho, que se revela, existem outras tantas coisas novas que desconhecíamos por completo.

Pense no exemplo de uma catedral às escuras... A visão do exterior por si só já lhe consegue causar impacto. A grandiosidade em termos de engenharia e a riqueza de detalhes quanto à arquitetura. Ao entrarmos, num recinto assim, nos vemos cercados por outra dimensão que era, então, inteiramente estranha àquilo que concebíamos em relação ao nosso mundo. Seu interior é um completo mistério ainda, uma vez que o desconhecemos e, às escuras, torna-o ainda mais misterioso e porque não assustador. Todavia à medida que vamos iluminando-o, vamos tomando consciência de sua existência. Acontece que não estamos familiarizados nem um pouco com a visão iconográfica de seu interior. Precisamos de um interlocutor a fim de traduzir aqueles quase infindáveis ícones que vão se revelando a cada foco da lanterna: figuras de linguagem, análise sintaxe, classes de palavra, fonema, estruturas gramáticas, composições, etc. Então, se todas as luzes se acederem a uma só vez... Valha meu Deus!!! Infarto na hora!

Pense comigo. Não é demais chegar, e, na lata, mandar; chupa essa manga: oração subordinada substantiva completiva nominal?! Não é matar o infeliz com um susto maior que a visão do Chuck sorrindo com uma faca na mão? Veja que, a menos que ocorra um milagre: o cara seja um Bechara nato; não dá pra um reles mortal, a apreensão de tais conceitos de forma autodidata. A grande maioria vai necessitar de bons mestres. Há que haver rito de passagem, iniciação e desenvolvimento para que a partir daí se alcance níveis de consciência e compreensão mais elevados. Sozinho, infelizmente, o cara vai transformar a “Catedral” num pavoroso castelo mal-assombrado. Mil bruxas malevas irão persegui-lo e infernizá-lo à base de mil vassouradas na cabeça. Provavelmente, o pobre infeliz vai viver uma experiência tão traumática que nunca mais vai querer chegar perto de gramática alguma. “Chega, não mais!!!“

Porém com os mestres de cerimônia certos, a viajem pode se tornar tranquila e, porque não, agradável. Veja que o idioma é como os oceanos... Um completando o outro. E, absolutamente, não dá pra navegar por eles, principalmente, dentro do oceano da análise sintática, sem o comando do “SE” e do “QUE” no leme do navio. Esses são os dois grandes comandantes capazes de transformar a viagem num grande cruzeiro ao redor dos oceanos gramaticais. Existem outros tripulantes, que por sua posição de transcendência dentro da viagem são de difícil compreensão, são os casos dos verbos: “Caber, Fazer, Convir e Promover. Esses caras são monges tibetanos. Melhor mesmo é deixá-los de lado, pois melhor os compreenderão os filólogos que gostam de interpelá-los em seus afazeres transcendentais. Porém, um em especial, apesar da sua impessoalidade, vale a pena conhecer. Existe um cara (monge também) que é simplesmente espetacular: o verbo “Haver”!

Pô! Haver é um verbo rico de usos e sentidos. Caramba! Veja no dicionário Houaiss, o Haver não é o maior verbete, mas está entre os campeões. Para se ter uma ideia da grandeza da criatura, o verbete ocupa quase duas colunas, perfazendo um total de 49 cm, ou seja, quase meio metro linear de informações. E olha que a letra é muito pequena. Dá pra perceber a grandeza do cara. Mas o melhor de tudo é que o “Haver” é um cara super gente boa. Ele tem um sentido de impessoalidade quando diz respeito à existência. Pode sim se tornar um pouco estranho. Nesta posição, ele assume o caráter singular e não pode ser visto de forma plural, concordando com as possíveis ações sugestivas presumidas a algum sujeito. O Haver é, nesta hipótese, o senhor da ação, ou seja, movimenta ato gramatical envolto no seu manto de impessoalidade a sós, nunca irá prescindir de sujeito algum.

Todavia em viagem de navio por este vasto oceano gramatical, conhecer o “Haver” é fundamental, não porque seja obrigação do viajante, mas, sobretudo, por transformar a viagem em algo muito mais prazeroso. O Haver é rico de sentido. Ele vai ter falar, por exemplo, sobre os pontos mais remotos desses oceanos por qual navega. Filosofar sob as estrelas que servem de guias aos navegantes cujo posicionamento lógico de alguma forma foi perdido. Vai te contar história de ilhas paradisíacas espalhadas por essa vastidão oceânica. Vai te conduzir pelos passatempos transcendentais do mundo de sua impessoalidade. Ou seja, o cara é um monge, um poeta, um filósofo e, sobretudo, um contador de estória dos bons. Veja que o papo na proa do navio vai fluir com uma absoluta espontaneidade, dentro dum clima de extrema camaradagem, isso é o verbo Haver. O Haver é um dos poucos que consegue transferir sua riqueza plural de forma gratuita aos que se predispõem em tê-lo como companheiro amigo de viagem pelo oceano de nosso idioma.

Já com o “SE” e o “Que”, aí a conversa é mais embaixo... Se o Haver é capaz de disparar o seu coração, o “SE” e o “Que” são capazes de quase fazê-lo parar. Tamanha é a importância desses caras dentro da racionalidade da navegação dos oceanos da gramática, principalmente, dentro da análise sintaxe e da morfologia. Mais do que bússola, são os comandos pelos quais se poderão traduzir com exatidão a rota da análise a ser seguida.

Senão vejamos: o “SE” na companhia de um verbo VTDI, particularmente, com um VTD, é capaz de traduzir com perfeição a transposição da voz passiva analítica para a voz passiva sintética. Ou seja, manobra o navio por um estreito, feito garganta, de maneira tão precisa que tornar a expressão mais simples. Encontra o atalho capaz de descomplicar e tonar o caminhar menos árduo à compreensão da voz passiva. Nessa condição, vamos chamar o “SE” simplesmente de PA (partícula apassivadora).

Quando ao lado de um verbo VI, VTI e de ligação, o “SE” tem a particularidade de imprimir uma fantasmática ao sujeito da ação, ou seja, sabemos que o mesmo está lá, porém não conseguimos nunca determiná-lo. Neste caso, o “SE” transformar-se em partícula de indeterminação do sujeito (PIS). Sendo assim, ele tonar-se o capitão dos nevoeiros o que conduz o barco pelas esparsas neblinas do além mar. Quem tá no comando não sabemos determinar, porém sabemos que tem alguém no timão da embarcação.

Agora na condição de acompanhante de um verbo VTDI qualquer, juntamente, com a companhia do sujeito dentro da estrutura oracional. O polissêmico “SE” mostra-se mais uma vez seu caráter coringa. Conferindo ao sujeito da ação tanto a condição de agente como também a de paciente. Veja aí que há um caráter reflexivo, espelho da própria ação. O “SE” exige do agente a autorreflexão, ou seja, o cara (sujeito) fica mais pensante, mais introspectivo, enfim, o sujeito torna-se consciente de si. Legal essa de fazer com que se recobre a consciência... Bom, nessa postura, o nosso “SE” é mais conhecido como partícula pronominal reflexiva (PPR).

Temos ainda uma variação do caso PPR: o “SE” nesta situação nos conduz ao conceito de reciprocidade. O sujeito provoca ação ao mesmo tempo em que a sofre por parte de outro sujeito, assim ambos são agente e paciente ao mesmo tempo. Veja que a ideia aqui é de confraternização ou de luta, ou seja, pessoas abraçam-se ou esmurram-se num só tempo. Então, nesta forma, o “SE” é uma partícula pronominal recíproca (PPR¹).

Existem verbos esquisitos: os pronominais. Eles não gostam e nalguns casos não podem estar a sós. Têm que estar sempre acompanhados por alguém, pois correm o risco de perder o sentindo semântico de si mesmo. Então, o nosso amigo de sempre vai estar os acompanhando com a mesma paciência e dedicação que são suas marcas características de sua identidade pessoal. Agora, diante do caso, o “SE” passa a ser partícula integrante dos verbos pronominais (PIV).

De toda a versatilidade que o “SE” exerce, em termos de função, é a de não ter função alguma. Esta condição, seguramente, é a que o “SE” mais adora estar, pois ele é aí um convidado ilustre na festa do salão. Tanto faz ele estar ali ou não. Sua presença não vai fazer diferença no sentido nem semântico e muito menos no sintático, a festa vai prosseguir do mesmo jeito. Talvez sua presença se justifique apenas como forma de melhorar a eufonia do contexto em que se insere. Sendo assim, se o “SE” se retirar não haverá nenhum prejuízo ao contexto em termos de entendimento, apenas o mesmo se tornará um pouco mais pobre em termos eufônicos, ou seja, a festa perde um pouquinho em brilho, mas nada que venha comprometer a animação. Vamos que vamos, a festa está aí... Visto assim, o “SE” é entendido como partícula de realce eufônico ou expletivo (PE).

Todavia nos confins limítrofes, nas transposições das estruturas oracionais, particularmente, nas estruturas de subordinação subjetiva e objetiva direta, o “SE” assume o caráter de conexão entre elas, assim ele passa se chamar conjunção subordinativa substantiva integrante (CSI). O “SE” funciona semelhante as eclusas do canal do Panamá que liga um oceano ao outro. Mas, sobretudo, é a conexão entre os oceanos que vai permitir um completar o outro em termos de plenitude, ou seja, o que faltava em um pode ser completado pelo outro, quer seja em sentido semântico quer seja em termos sintático.

E, finalmente, o nosso polissêmico amigo pode ainda assumir a condição de conjunção subordinada de expressão de circunstância adverbial condicional (CC). É quando a ação verbal vem exprimida no modo subjuntivo, ou seja, para que determinado fato aconteça, haverá primeiro que acontecer outro, dando assim suporte existencial ao segundo. O último depende necessariamente do primeiro para existir.

Observe que em pelo menos oito situações diferentes o “SE” assume caráter distinto. Então, sem o conhecimento prévio dessa polissemia do “SE”, estaremos literalmente perdidos em meio aos oceanos morfológico e sintático da gramática. E quer saber? As bancas de concurso exploram isso aos montes e regorjeiam-se de nossa ignorância para nos humilhar! Sem essa noção, em sede de avaliação pelas bancas, a gente não precisa nem se dar ao trabalho de sair de casa, pois seremos fulminados mesmo antes de começar a abrir a prova.

Todavia, não para por aí. Temos ainda o nosso amigo “QUE” o qual, igualmente ao “SE”, pode exercer enumeras facetas no mar gramatical. Se fossemos falar exclusivamente sobre ele, haveríamos seguramente que abrir um capítulo à parte, tamanha é sua multidiversidade de sentidos.

Senão, o vejamos apenas em termos morfológicos: o “QUE”, em termos de conjunção subordinada adverbial de circunstância, poderá exprimir, seja só ou em meio a uma locução conjuntiva, ideia de causa, concessão, condição, conformação, etc. Já, em sede de conjunção em período coordenativo, podemos ter sentido de explicação, comparação, adição e consequência. Daí vêm as formas de conjunção subordinativa substantiva integrante, cujo emprego se dá para conectar estruturas oracionais a fim de completar o sentido do termo subordinado. Mais adiante o “QUE” pode assumir várias classificações: preposição acidental, quando compõe locuções com os verbos ter ou haver; advérbio de intensidade, pronome interrogativo e substantivo quando precedido de um termo determinante, normalmente, um artigo, porém aí ele gosta de se salientar, adora aparecer de chapeuzinho, mas cuidado, também nas vezes de pronome interrogativo quando tônico, ele se mostra com mesmo chapeuzinho festivo. Lógico, o danado não iria perder a chance de aparecer pra fotos.

Porém não acabou por aí. O “QUE” pode ser, como no caso do “SE”, mera partícula expletiva de realce eufônico. Entretanto na condição de pronome relativo ele se supera, alcança sua grandeza máxima. Observe que ao retomar o termo anterior, neste tipo de representação, muitas vezes assume a carga cármica do antecedente, fazendo às vezes de sujeito, objeto direto, predicativo e por aí vai... Guarda, sempre neste caso, uma relação subordinativa adjetiva que pode ser de restrição ou de explicação em relação à estrutura oracional principal. Podemos dizer que no papel de conjunção integrante e no de pronome relativo, o “QUE” assume a função do protagonista da trama, ou seja, mocinho da história. Já nos demais papeis ele pode passar como ator coadjuvante sem problema algum.

Ufa! Quantos “SE” e “QUE” ... A bem da verdade, lá em estado de natureza, no âmbito de nossa selvageria, pelados à beira dum rio devorando um peixe cru, pescado com as próprias mãos, não precisamos de nada disso. Conhecer essas entidades para quê? Só vai servir mesmo é pra atrapalhar. Podemos perfeitamente dizer: “nós foi”, “a gente fumus”, “eu se ferrei” e por aí vai. O que importa é comunicar a informação, então, absolutamente, em estado de selvageria, tais conceitos introduzidos pelos “QUE” e “SE” não vão fazer a menor diferença à comunicação pretendida.

Agora, quando se trata de alcançar os mais altos patamares da expressão do espírito humano, aí não tem jeito. Entidades como o “A”, o “SE, o “QUE” e o “HAVER” tonar-se-ão apenas interlocutores que são, porém, imprescindíveis na tradução iconográfica dos ícones revelados por essa estupenda viagem pelos oceanos de nosso idioma. Ter noção básica de como eles se relacionam com as interlocuções conceituais, é apenas o mínimo necessário para que a gente não fique em escuridão de ignorância, pois está crônica só falou de superfície. Lembre-se de que os oceanos não são apenas compostos de superfície, mas também de profundidade. Viajamos de navio, porém, em muitos casos, temos que ter submarinos operados por filólogos quando as questões tratam de temas que envolvem grandes profundidades.

Na condição de selvagem, ou com os ensinamentos da tia Maricleia, jamais passaremos pelo crivo de uma banca examinadora de respeito. Melhor mesmo, como disse antes, nem se dá ao trabalho de sair de casa. Os caras das bancas são filólogos contratados por elas e se posicionam de maneira muita à vontade e divertida dentro desses mares, parecem até o Rubinstein dedilhando o seu piano. Pode acreditar, esses caras se especializaram na arte de transformar o céu gramatical em inferno para aqueles incautos menos estudiosos. Veja, há infinitas possibilidades de formular questões apenas com essas entidades aqui em comento. Que dirá viajando por esses enormes oceanos linguísticos. Sabe lá o que irão inventar?!

Então, a questão é: estude, estude e estude. Aí, de escudo e de espada a mão, podemos ousar em enfartá-los. “Venham”!

(Fábio Omena)

Ohhdin
Enviado por Ohhdin em 27/04/2014
Reeditado em 04/05/2014
Código do texto: T4785168
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