A batalha – Confissões de vencedores prisioneiros

Eram trezentos. E nós, quatorze. Não sabíamos quem iria nos guiar, quem seria nosso comandante nesta batalha. O dia chegou, depois de uma semana esperando. Na primeira batalha, vencemos quatro, e era esse o plano, todo já traçado por nosso chefe: queríamos , em cada momento, eliminar quatro dos trezentos. O período do embate era duro, horas lutando contra nossas próprias fraquezas, nossos preconceitos, contra a dura realidade de sermos apenas “um” para enfrentar duzentos e noventa e seis, para resolver horas de problemas.

Eram duzentos e noventa e dois, agora. E nós já não éramos mais os mesmos. No final de cada batalha, quase ao meio-dia, apesar de tudo, estávamos prontos e dispostos, estávamos reconstruídos, graças às orientações do nosso comandante, que era, desde o primeiro dia de conversa, por tudo que falou e demonstrou do seu ser, da sua postura perante essa batalha, a nossa grande inspiração. Sobrevivemos a mais um dia, agora eles já eram duzentos e oitenta e oito. O fato de estarmos vivos e fortes, esperando seja lá o que fosse, devemos a ele, nosso comandante. Ele se revelava a todo instante de nossos encontros, nos encantava com seus exemplos e experiências de outras batalhas, ao ponto de acharmos fácil essa a que nos submetemos, ao ponto de querermos nos doar à essa luta que ele tanto enfatizava necessária à vida, ao ponto de desejar esquecer as derrotas que tivemos e acreditar que o que somos, a partir daqueles momentos, era o bastante para recomeçarmos, para seguir o caminho que ele descrevia com tanta paixão, com tanto amor à profissão. Desejávamos ser como ele, um comandante que não se anulava como pessoa, um comandante que tinha a sutileza nas palavras de agressão, a assertividade nos momentos de dúvida e de defesa, e o sorriso entre os intervalos de choro.

Vencemos mais quatro, eram só duzentos e oitenta e quatro. Montamos outra estratégia, foi planejada nossas saídas da fortaleza, depois de um mês de ensinamentos: era preciso que cada um, agora sozinho, enfrentasse alguns desses duzentos e oitenta, e fosse ao campo de batalha colocar em prática o que cada um de nós absorveu do nosso comandante. Sentíamos medo, mas nossos encontros, uma vez por semana, fortalecia-nos. Começamos a montar nossas próprias estratégias, a decidir, a comandar, a agir como nosso comandante ensinou, cada um da sua forma. Cada encontro não era só um momento de acertos de contas, de conversa sobre o que estávamos fazendo no campo de batalha, mas sim uma oportunidade de sermos nós mesmos, com todas as dúvidas, medos e sonhos possíveis. Esperávamos esse dia como se fossemos crianças esperando ansiosas a hora da professora contar estórias, e dentro dessas estórias pudéssemos acrescentar as nossas experiências, os nossos desejos, dando aos fatos os desfechos que cada um quisesse. Era o que acontecia.

A etapa no campo de batalha acabara com sucesso; todos tinham que vencer, no mínimo, uns trinta dos duzentos e tantos que ainda restavam, e quase todos conseguiram. Ninguém queria desapontar nosso mestre, mas um morreu no campo de batalha, não seguiu as instruções tão lembradas e trabalhadas pelo nosso comandante na fortaleza. Éramos só treze agora, porém éramos capazes de muito mais. A partir daí os demais obstáculos, apesar de muitos, parecia passar por nós como relâmpagos. Aqueles duzentos e tantos não nos assustavam mais, sabíamos como agir e o que fazer.

Faltavam apenas doze dos trezentos de início, e éramos treze. Três semanas eram o suficiente para ganharmos essa batalha. Foi aí que achei a luta injusta, que comecei a entristecer por saber que não teria mais os trezentos para combater e, consequentemente, não estaria mais com o grande comandante, cujo nome é o mesmo de uma divindade escandinava, deusa dos guerreiros – nada mais coerente do que seu nome pela pessoa que se tornara e pelo papel que desempenha até hoje. Por isso nós vencemos tantos sendo um só, por nosso comandante ser o que é. Vencemos por permitir que ele nos transformasse em guerreiros educacionais, já em construção a algum tempo, mas que precisávamos de uma finalização, de um direcionamento.

Não poderia ser diferente, valeu a pena passar por tudo e chegar, muitos de nós aos escombros, nessa etapa do curso, ressuscitar, renascer em nós a vontade de entrar na guerra, de ensinar, por causa da tua prática, literalmente falando. Então nos rendemos, desejamos voltar no tempo, voltar às trezentas horas que um dia nos mantinham unidos. O que era um tormento, com a presença da nossa comandante, tornou-se um lamento. Lamentamos não termos nos doado mais tempo nesta luta, lamentamos as trezentas horas serem tão poucas, poderiam ser seiscentas e, ainda assim, venceríamos, pois ninguém sente-se um perdedor tendo como educador alguém como você, Walkíria. Deixamo-nos vencer por você não usar da força que lhe competia; nos envolvemos por você não nos aprisionar nos dogmas da disciplina, nos esforçamos por você não exigir o que não éramos capazes de fazer, aprendemos por você vivificar aquilo que ensinava. E hoje, já passadas tantas aulas, já vencidas tantas batalhas, somos prisioneiros da prática de ensino, das trezentas horas que um dia desejamos que terminasse; somos prisioneiros porque nossa memória jamais esquecerá...

...Por tantas vezes que teus ensinamentos fizeram-nos acreditar na vida, na Educação, na beleza de ser um educador, enquanto as coisas lá fora não nos davam sequer uma única resposta, eram sempre tão divergentes; por tantas vezes que você se expôs, se desdobrou para proporcionar-nos momentos de aprendizagem, dizendo que esse era o seu papel, enquanto outros nem nos olhavam; por tantas vezes que você se fez presente a cada aflição trazida para ti, se fez rir porque precisávamos, impedindo que muitas das nossas lágrimas não rolassem e muitos dos nossos problemas fossem amenizados, enquanto as situações nos obrigavam a nos entregar, e você resistiu em nós; por tantas vezes que teu semblante refletia do teu ser toda simplicidade, toda alegria de viver, e com seu jeito nos fez aprendizes e admiradores deste saber, do saber viver, do saber se conhecer, do saber conviver, acreditando muito mais no que poucos bons mestres nos ensinaram, crendo no ser humano, apostando na felicidade de sermos o que somos, de persistirmos em nossos valores, enquanto o mundo era tão contraditório; por tantas vezes que você foi aquilo que esperávamos, e nos ensinou a aceitar e entender as coisas, mostrando-nos as maneiras para chegarmos ao que queremos... por tudo isso, nós amamos você.

Suspiro
Enviado por Suspiro em 03/11/2008
Código do texto: T1262800
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