A MÃE DA ANISTIA

Um dia, altas horas da noite, vendo-a retirar-se de ônibus de uma reunião do núcleo pela anistia, em Fortaleza, eu prometi de mim para mim mesmo, em conversa com os meus botões: – De algum modo, combatente senhora, ainda lhe vou prestar uma simples homenagem. Com sacrifício, já beirando a madrugada, dona Lourdes retornava ao distante conjunto José Walter, onde, à época, ela morava.

Dona Lourdes Albuquerque, dois filhos prisioneiros políticos e outro no exílio, não se deixou nunca se amofinar por nada deste mundo. Era uma militante renitente contra a ditadura, indo até o limite em que oposição àquela coisa malsinada um cristão ainda pudesse fazer. Veterana de guerra, nos movimentos populares, não arredava pé das amiudadas palestras e reuniões, que se podiam realizar a bocas miúdas e em recintos fechados.

Com tempo integral dedicado à causa, a partir da adesão nacional à bandeira pela “Anistia ampla, geral e irrestrita”, debaixo de pau e pedra, no Casarão Democrático da Avenida da Universidade ou onde quer que fosse, a mãe do Pedro, do Mário e do Célio lá estaria, sem falta. Sua presença, desde que para torpedear a situação que nos fora imposta, era tiro e queda.

Fibra, garra e valentia, tudo isto de uma vez só estava ali naquela brava mulher. Sempre esteve com ela o espírito de decisão. E não é hipérbole afiançar que, se o regime militar ruiu pelas pernas e a anistia política foi conquistada, no Brasil, após vinte e um anos grises, um eito enorme do percentual dos esforços, do denodo e da energia empregados na tarefa cívica deveu-se tal eito de participação coletiva, em boa parte, à força de vontade da dona Lourdes. Ela residia no “front”, sempre ativista e altiva, de pé aceso na fogueira das lutas sociais: greves, passeatas, semeadura de panfletos, reuniões secretas, atos públicos.

Grande exemplo materno, via no agir próprio e na ação conjunta dos companheiros a única chance de poder influir para liberar do cárcere os dois filhos. Por outro lado, com tanta intrepidez, creio no que salta aos olhos do rosto, ela vislumbrava, na contestação ao poder da força imposto ao País, a saída mais viável para trazer de volta ao lar o seu rebento estimado que se refugiara no estrangeiro. Era o Pedro, com passagem por outros territórios latino-americanos, penso que já com os pés no Canadá.

E aconteceu assim. Armada de determinação, cheia de amor maternal e desprendimento de si mesma, dona Lourdes enfrentou cobras e lagartos, alcaguetes, ônibus lotados, a ditadura, o diabo.

Quando a saudade dos seus meninos lhe doía mais desumanamente, a abnegada mãe revolucionária corria, com grande calor humano, ao nosso núcleo pela anistia. E ganhava alma nova meio ao convívio dos companheiros. Aí opinava, instruía aqueles em dúvida, estimulava e era ouvida. Líder. E nunca foi assuar-se, ranzinzar ou limpar os olhos, lá pelos cantos da reunião. Sabia mesmo era perseverar, instigar o rei. Batalhar com unhas e dentes. Pelos filhos em liberdade, mas também por uma vida geral mais humana. Para todos os cidadãos, inclusive para os torturadores.

Afinal, dona Lourdes, aqui o meu carinho que há tanto tempo só a mim mesmo lhe prometera. Nos caminhos da resistência à tirania, a senhora não foi somente a mãe de três perseguidos políticos tão dedicada, mas, pelo menos no Ceará, a própria mãe da anistia. Ao menos, sim, neste chão nordeste, e, sem favor algum, uma das mais batavas e obstinadas mulheres que já se arriscaram contra o arbítrio da ditadura no País. Por tudo isso, cara paradigma de mulher, por todos nós, que também pegamos carona na sua determinação, aceite o meu cordial “muito obrigado!”

Fort., 03/12/2008.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 03/12/2008
Reeditado em 19/08/2019
Código do texto: T1316591
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