O POETA E O CÉU

Um dia algum filho, sobrinho ou neto vai sentir orgulho em dizer que descende de uma linhagem de poetas. Nós escritores temos o dever ao mesmo tempo de criar esta poesia e ressaltar os nossos mestres.

Esta obra é dedicada a Severino Luiz Pereira, tio avô, de quem tive, quando criança, meus primeiros contatos com a poesia. Com sua simplicidade me fez tomar gosto pela literatura. Hoje, quarenta anos depois, tento resgatar em minha memória seus ensinamentos.

O velho ficou neste mundo

Para penar e sofrer

Cheio de mil privações,

Não vale a pena viver

Até pelo pão da vida,

Vive arriscado a morrer.

O cabra quando é valente se vê logo na entrada. Severino Luiz Pereira era um desses sujeitos que Deus sacudiu no mundo e não quis saber do resultado.

O destino nem teve tempo de lhe ensinar o combinado. Severo, como era chamado desde criança, passou a perna no dito e se negou a cumprir a sina que lhe estava traçada. Como ele mesmo dizia: “Deus me fez inquilino e vou pagar as promissórias até a missão estar terminada”.

A pessoa fica velha

Não é mais inteligente

As carnes vão se acabando,

Ficando os ossos somente

Foi de obrigação escrever

As dores que o velho sente.

Brasileiro nascer pobre é comum, no caso dele foi ainda pior. Veio dar o ar da graça bem no meio do sertão nordestino, onde as dificuldades da vida são cada dia maior. Só chove quando São Pedro está bem humorado e com cara de bucho cheio. Quando não, entra mês e sai mês e nada de cair uma única e bendita gota d’água. Nem pra dar uma pequena molhadela no chão rachado e muito menos pra fazer a alegria da boiarada magra. Às vezes, a seca e o calor é tanto que urubu passa voando numa asa só enquanto usa a outra pra se abanar. Só eles e os carcarás, são os únicos bichos que nessa época andam de papo inchado.

Com a moleza das pernas

Aí se escancha de preguiça

Só quer viver deitado

Do mundo nada cobiça.

Os olhos ficam amarelos,

Como quem ta com icterícia.

Pra Severo, a vida reservou uma pequena porção de terra seca, onde feito uma besta, lutava com o pai de sol a sol no cabo de uma enxada pra retirar daquele nada, o sustento da família.

Moravam numa casa velha cheia de cacarecos que nem podia chamar de mobília. Eram seis camas de varas, dois baús de guardar roupas e um fogão de lenha pra esfumaçar a cozinha. Naquela parte também tinha uma mesa de madeira fraca, quatro tamboretes desaprumados, uma chaleira de bico quebrado, três panelas, sete pratos e alguns cacos de talheres necessitando reparos.

Um facão enferrujado pra partir carne com osso, quase sempre de pescoço por conta do dinheiro parco. Dois potes grandes de barro um pra guardar água da chuva e o outro a de uma cacimba barrenta. Quem sofria era a jumenta que uma vez por semana trazia no lombo magro dois tonéis cheios e pesados com aquela água nojenta.

Cada dia que se passa

Ele vai ficando pior

Abusa com a patroa

Cada um tem um lençol

Se aumentar o lundúm

Termina dormindo só.

De valor naquela tapera só mesmo uma Bíblia Sagrada de capa grossa e letras douradas onde o pai, Seu Luis Corrêa, costumava gastar uma hora por noite lendo para família. Não tinha a mesma visão da mocidade. Com a ponta do dedo ia fazendo uma trilha por cima das letras e vez por outra se atrapalhava no soletrar das palavras por conta da luz fraca que vinha do candeeiro e também do pouco estudo que o velho teve nos tempos de solteiro.

De tanto ouvir o pai reclamar daquelas letrinhas miúdas, Severino pegava o santo livro escondido ia olhando e se interessando pela sagrada escritura estampada naquele monte de linhas.

Com agilidade decorou alguns provérbios. Depois, danou-se a soletrar daqui e dali e não demorou muito a causar espanto nos irmãos lendo aquele palavreado cheio de santidade.

Ainda na mocidade ouviu um velho vaqueiro amigo de seu pai dizer que para o pobre melhorar de vida, só mesmo com muito trabalho ou através da educação. Palavra que, pra ele, significava apenas os bons modos ensinados em casa pela mãe.

Começa a sofrer da mente,

Com tudo ele se aperta.

Se vai fazer um serviço,

Peleja mais não acerta.

Danado pra soltar traque

E andar de braguilha aberta.

Um dia foi com o pai à Esperança, cidade do interior da Paraíba mais próxima do lugar onde moravam, vender os produtos colhidos do sítio e comprar os mantimentos de extrema necessidade como café, sal, fósforo e querosene pras lamparinas.

No meio da feira havia uma pequena multidão em volta de um sujeito com um livreto nas mãos fazendo o povo dar risadas. Contava uma história engraçada de um certo Coronel que teve a noiva roubada pelo capitão Virgulino. O cangaceiro era fino, nem queria a moça, mas por força de um desagrado com esse tal oficial Sarmento, resolveu fazer uma surpresa. Chegou na porta da igreja sem nem perguntar pelas horas levou a noiva embora bem antes do casamento. Pra terminar a história depois de quatro meses brincando de namorado, Virgulino se viu cansado e mesmo com o bucho inchado, mandou a coitada embora.

O bom daquele enredo era o jeito que o cabra contava. As frases eram rimadas de uma forma inteligente. Foi daí pra frente que Severo descobriu o encanto do cordel. Danou-se a escrever versos, criar rimas, fazer poesias e inventar suas próprias estórias.

Vem uma dor de barriga,

Depois a dor de costela.

Com uma dor de cabeça,

Ataca o nó na goela,

Uma dor no mocotó

Subindo para canela.

Com uma imaginação brilhante, era capaz de deixar Cervantes, com inveja de suas batalhas. Pelo fio de uma navalha esculhambava uma dama, dava glória a um bandido, rimava cego com bengala, rede, mala, varal e cama.

Pra completar a jornada valeu-se de um violão. Danou-se no dedilhado, aprendendo o “Quem quer pão,” de todo principiante. Numa constante latumia demorou quase um mês até aprender de uma vez a domar as seis cordas no ritmo e na melodia.

Aos poucos e sem demora consolidou-se poeta. Não sei de onde tirava, mas quando abria a boca e falava, os versos iam pulando, ganhando vida e ficando gravados nas folhas do tempo.

Severino era mágico. Não desses usadores de cartolas que se valem de capas pretas e das sombras pra realizar os seus feitos. Com ele era de outro jeito tudo às claras, criado no improviso sem propaganda ou aviso do rumo que a cantoria tomava.

Ai vem a moleza das pernas,

Se vale de um bastão,

Não pode dar uma carreira,

Se tropeçar cai no chão.

Cresce o bucho, a barriga cai

Não sustenta o cinturão.

Se via nele um Beethoven Paraibano criando mil maravilhas em meio a um roçado de feijão e uma plantação de tabaco. Do Cariri ao Crato virou do dia pra noite um autodidata do cotidiano.

O tempo passou e o garoto Severo virou mestre. Chegasse quem fosse lhe desafiando num mote, levava desaforo. Certo dia, Socorro, filha de Juvenal barbeiro, metida a sabedeira e a cão do segundo livro achou de atiçar o velho pra uma peleja. Pensou que fosse moleza, mas depois de duas horas metida na cantoria não teve pai, nem mãe nem tia pra lhe salvar do fracasso. Pediu licença e foi embora com o rabo entre as pernas.

Cria ruga no pescoço,

Os ouvidos encabelados,

Crescem tanto as sobrancelhas,

Parece um bode raçado

Dá a lepra nas pestanas,

Termina os olhos pelados.

Pra Severino não havia inimigos, no máximo adversários de prosas e pelejas poéticas. Passada a brincadeira cada um tomava seu destino e mais depressa que uma carreira a vida voltava aos eixos. Deixo pros filhos uma trilha pra encontrar amigos, dizia o velho Severo.

Seus versos eram forjados na fogueira da simplicidade onde cada um era todo mundo e o mundo na realidade nada mais era que a família, os vizinhos e amigos conquistados através do seu jeito de contar as coisas do universo. Fosse em prosas, poesias ou versos cada pedacinho de coisas ou eventos se transformava numa história encantada onde os ouvintes de qualquer idade se calavam e esperavam pacientemente o fim de seu relato.

Aí pega a se lembrar

Do tempo que era moço

Dias que ele não janta

Dias que não quer almoço

Morre e vai para o cemitério

Somente o saco de osso.

Aos noventa anos, o velho Severo partiu desta pra melhor. Deixou uma legião de admiradores. Dizem que em seu funeral marcaram presença desde senhores da política, religiosos, mães de santos, companheiros de copo e de boemias. Feirantes, retirantes, prostitutas arrependidas, meliantes e coronéis. Empresários, repentistas, cantadores de toadas e trovadores lembravam seus cordéis. Do mais humilde ao mais rico, todos foram tocados pela poesia do velho menestrel. A cidade de Esperança parou pra acompanhar a última jornada de um de seus mais ilustres filhos.

O sino da catedral marcava penosamente o compasso da caminhada de Severo, conduzido desta vez por uma triste comitiva. Na hora da despedida, Luiz, o filho que seguia os caminhos do velho na literatura, na beira da sepultura recitou alguns versos lembrando as peripécias do querido genitor. A multidão presente não agüentou e se derramou em pranto. Mesmo quem não era parente ou amigo, sentiu-se parte da família, e não contendo a emoção, também deixou sua contribuição de lágrimas por todo o trajeto do cortejo.

Tanto trabalho na vida

E o que tinha perdeu.

Lutou tanto mas não pode

Governar o que é seu.

Ele só lucrou da vida

Apenas o que comeu.

Aos que conheceram e tiveram o prazer de sua companhia sabem a importância de ter compartilhado do seu carinho e beber de sua sabedoria.

Se hoje rabisco alguns versos, contos ou mesmo qualquer outra forma de arte escrita, devo a ele esta vontade imensa de compartilhar, através das palavras, o pouco que a vida me dá e o muito que tiro dela.

Deus, em sua benevolência, com certeza reservará uma grande mesa onde todos os poetas como ele, possam brincar de inventar histórias.

Acho graça a mocidade

Que não quer envelhecer

Velho ninguém quer ficar

Moço ninguém quer morrer

Sem ser velho não se vive

Bom é ser velho e viver.

Quem for velho me desculpe

Eu ter lhe tratado assim

Todo esse sofrimento

Já foi passado por mim

E daqui vou terminando

Adeus, este é o fim.

Os versos contidos nesta obra são do próprio Severino Luiz Pereira publicados em 1994 num cordel intitulado Vida de Velho.

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 09/06/2009
Reeditado em 21/06/2009
Código do texto: T1640968
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