Miguel Mário Sola

Em 16 de setembro de 2008, recebemos a notícia do falecimento de Miguel Mário Sola, meu primo carnal, filho de Lina e Giovanni Sola.

Uma tristeza diante daquela figura impar. Falar o que? Era chorar a perda e se lembrar do grande Miguel. Lembrar das suas histórias que nos contou e daquelas que a gente imaginava que estavam partindo com ele, sempre esboçadas no saudoso sorriso de canto de boca.

Lá no Jardim da Saudade, eu e Sola, seu irmão mais velho, lembrávamos em voz alta. Bruno, o irmão mais novo de Miguel, ao nosso lado, escutava tudo. Calado, olhos vermelhos, apenas balançava o queixo aprovando ou reprovando. Eram as “exéquias” de Miguel. Se estivesse em um velório, certamente usaria esse termo - sempre foi chegado a rebuscar o português.

À sua volta, estavam muitos daqueles que o acompanharam durante anos. A vida de Miguel foi um livro e, se transformado em filme, daria um longa metragem que roteirista algum conseguiria reduzir a meras duas horas.

Com ele, convivi desde o ano de 1956, quando nascemos. Demos nossos primeiros passos juntos. Passamos muito tempo um ao lado do outro, crescemos, estudamos e formamos até que a vida profissional nos separou. Foram muitas as histórias que eu escutei.

A sua casa em Poções era defronte ao muro do quintal da nossa. Então, bastava abrir o portão e estávamos juntos. Fosse para estudar, para jogar bola na varanda ou para fazer companhia um ao outro até mesmo em dias de velórios. Sempre encontrávamos tempo para ler os livros em italiano que meu tio Giovanni havia recebido da Itália.

Em um dos quartos da casa havia o “Atelier de Dona Lina Sola” (assim constava no talão de notas impresso na tipografia de Batatinha). Minha mãe, irmã de Lina, ajudava nas costuras e me carregava para passar a tarde estudando junto com Miguel. No entra e sai das clientes para provar roupas, a gente enganava a tarde toda. Ou jogávamos bola ou fingíamos estudar a tabuada enquanto rolava a conversa.

No final da tarde, era a hora de ser sabatinado na tabuada. Miguel me ensinou o truque da página dobrada para “dar a lição”. O verso da tabuada ficava voltado para nós e a gente respondia a tábua da divisão ao contrário. Só que minha mãe enganchava o dedo na tabela dos nove e eu não podia ler os números encobertos. Ela me mandava estudar a conta dos nove. No dia seguinte, na escola, Miguel respondia tudo e eu não sabia nada.

Numa certa vez, Elisa, minha irmã, resolveu dar “banca” numa mesinha lá na marcenaria de tio Giovanni. Miguel estava impossível naquele dia, não havia jeito de querer estudar. Ela foi contar pra meu tio e não houve conversa: Miguel tomou uma surra de ripa e acabamos chorando os três.

Jogando bola no quintal, ele tropeçou na tampa do esgoto, bateu com a boca na beira do passeio e quebrou o dente da frente. Pensa que Miguel se abalou? Nada que o Dr. Irundy não resolvesse no dia seguinte, colando o pedaço do dente. Depois, ficou com a “janela” na boca durante anos e não se incomodava com o visual.

Já rapaz, às sete da noite, ele descia para se encontrar com a “galera”. Vestia um blusão de veludo verde, com listras finas. No bolso, carregava uma bombinha de Alupan, remédio para evitar alguma crise asmática. Andava com as mãos no bolso para proteger-se do frio de Poções. Ali, no jardim da praça, a gente se reunia até a meia-noite ou um pouco mais. Quando eram nove horas, Miguel passava a levantar a manga do blusão e olhava o relógio a cada cinco minutos. Nove e cinqüenta e cinco ele se despedia da gente e não tinha conversa ou um minutinho a mais. Tinha que chegar em casa às dez, ordem de seu pai.

Os nossos melhores programas eram feitos dentro dessa faixa de hora para que Miguel participasse. Infelizmente, as idas às casas noturnas não podiam ser feitas antes das dez. O jeito para Miguel era se virar durante o dia para “afogar o ganso” e o local onde tinha ido era mantido em segredo. Outro dia me encontrei com Carlinhos Rizério e ele se lembrou desse detalhe.

A obediência que ele tinha ao pai era impressionante. Carregou até o dia em que se mudou para Salvador. Quando Miguel chegou na capital encontrou a liberdade... Virou “bicho solto” como se diz nos dias atuais. Até aprendeu a fumar. A asma acabou...

Naquela época, 1972, havíamos passado no vestibular da Escola Técnica (atual Cefet). Foi fazer o curso de Mecânica, e eu, o de Estradas. Chegamos de cabeças raspadas para evitarmos qualquer possibilidade de trote. Por um tempo, morou em alguns pensionatos no bairro de Nazaré e na Rua Senador Costa Pinto, enquanto eu morava no Politeama. Acabamos morando juntos na Rua Marujos do Brasil, no Tororó, com Sola, Michele e Roberto Dantas.

Em 1975, ele acordava às cinco da manhã para pegar o ônibus da Dow Química. Ganhou o apelido de “Peão” e me chamava de “Bahema”, pois éramos estagiários dessas empresas. Até os últimos dias a gente se tratava por esses apelidos. Depois da Dow, ele trabalhou na Esso, na Petrobrás Distribuidora e na Tapeçaria Chic, onde trabalhamos juntos por alguns meses do ano de 1992.

Seu namoro com Lise começou no Canela. Lá, das janelas dos apartamentos de tia Anina ou de Ruy Sarno, ficava paquerando enquanto a gente jogava baralho ou tomava cachaça com limão. Era o Miguel adiantado e nós os abestalhados! Enfim, era ele quem colocava a gente pra dentro nas famosas festas do Ed. Comendador Valério de Carvalho, no Campo Grande, usando o prestígio de Lise.

Mas Miguel se tornou um forte batalhador. Era o filho do meio, o mais querido, como dizia Sola, o irmão primogênito – é o queridinho de Dona Lina!

O destino aprontou com ele. Passou por momentos difíceis, mas nunca se abatera, nem mesmo com a doença que lhe acometia. Com todos os percalços da vida, aproveitou muito bem os seus 52 anos. Tirou de letra!

O seu martírio começou na mesma época em que o filho Tiago se acidentou. Nos reencontramos em maio de 2004, na sala da emergência do Hospital Aliança. Enquanto o seu coração batia a quase 300 por minuto, ele ainda tinha coragem de dizer ao médico plantonista que não era nada, apenas um mal estar. Do nada, passou a registrar 80 batimentos e ele passou a dizer que o defeito era do aparelho.

Minha irmã o acompanhou nos piores estágios da doença e nos contava os feitos heróicos de Miguel para driblar ou atenuar o sofrimento. A internet deu a ele a possibilidade de estudar todos os efeitos da sua doença – sabia cada detalhe. Debateu com os médicos e resistiu até os seus últimos dias, buscando as mínimas alternativas que lhe sobrariam, como se cada dia pudesse ser vivido como meses.

Esse era Miguel, o coração valente, aquele que se mostrava mais forte desde a sua infância. O Miguel que não temia nada. O gladiador romano do circo de Zostinho, sempre disposto e pronto para a batalha.

Era o Miguel encarnado na fantasia de Peter Pan, desfilando no Clube União das Classes. Era o menino que não queria crescer.

O filho do meio. O pai de Carol, Tiago e da pequena Maria Clara. O Miguel que se tornou inesquecível.

O nosso Gueguel.

Luiz Sangiovanni
Enviado por Luiz Sangiovanni em 15/08/2009
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