UM TEXTO COMPLICADO DE LER, MAS FÁCIL DE COMPREENDER

É com grande satisfação que publico aqui o comentário do amigo e leitor Alforriado ao meu texto A TRUCULÊNCIA COM QUE JULGAMOS AS INTENÇÕES ALHEIAS, publicado neste meu espaço no Recanto das Letras em 17/02/2010.

17/02/2010 23h29 - ALFORRIADO

"É complicado ler um texto grande como o seu num site como esse, mas a sua forma simples, objetiva e o conteúdo cerdadeiro e atual prendeu minha leitura. O que você diz é perfeitamente aplicável na grande maioria dos casos mais rumorosos, dos crimes pontuais,da incrível manipulação das massas por parte de quem detem o poder de informação. Muito bomtexto, valeu tê-lo lido por inteiro."

A TRUCULÊNCIA COM QUE JULGAMOS AS INTENÇÕES ALHEIAS

O que motivou este texto é a disposição que temos para julgar os outros, o que, em regra, fazemos com vistas em nossa própria maneira de pensar e proceder, confirmando sempre o ditado que diz que “o bom julgador por si julga”.

No contexto deste ditado a qualificação “bom” não se refere a eficiência do “julgador”, mas a disposição que ele tem para julgar, sendo “bom” então em apressar-se para julgar os outros e dar ênfase ao delito alheio. Sendo assim, a expressão completa “o bom julgador por si julga” quer dizer que “a pessoa que faz grande questão de julgar e muito se apressa para fazê-lo, julga com base em sua maneira de pensar e agir”. Logo, esse “julgador” presume que todos pensam e agem como ele, por isto se ele (o “julgador”) teria pensado ou procedido de certa forma em tal circunstância, em circunstâncias idênticas os outros teriam agido da mesma forma. Em outras palavras, o “julgador” pensa que se ele é violento, sem controle de suas emoções, todos são assim e se ele é intolerante, todos são igualmente intolerantes e fariam tudo como ele faz”. Tanto é que, comumente, ao julgar os outros os “julgadores” ponderam que o delito que o outro cometeu é imperdoável porque ele (o “julgador”) já fez muita coisa errada, mas jamais cometeu aquele delito específico. E, para exemplificar melhor, é sabido que indivíduos ciumentos têm sólida certeza de que seus cônjuges os traem porque eles mesmos costumam ou desejam trair. Logo, a seu ver, se eles traem, por sua lógica, trair é usual e, por conseguinte, todas as pessoas traem.

Portanto, quem se apressa para julgar os outros certamente vê a sombra de seus pensamentos e maneira de agir realizando-se através das ações do réu a sua frente. E, tais pessoas, se ainda não deliquiram, têm potencial e, por certo, delinqüirão. Ressalvo, porém, que muitos indivíduos não delinqüem por saber que há artigo de lei que os enquadraria como delinqüentes. Do contrário, executariam as mais sórdidas ações. Aliás, não é segredo que pessoas delinqüem apoiadas pela lei ou distorcem-na para desculpar-lhes os delitos.

Observemos o caso recente do vigilante de trinta e um anos que manteve a ex-esposa em cárcere privado durante setenta horas no período do Carnaval de 2009 no município de Canoas, no Estado do Rio Grande do Sul. Os próprios policiais que atenderam a ocorrência disseram que a ação do rapaz foi motivada por ciúme e paixão desenfreada porque ele não aceitava a separação conjugal imposta pela mulher. Todavia, ao mesmo tempo, o delegado do caso disse que, porque a arma que o vigilante usou para ameaçar a ex-mulher era comprada vinte e quatro horas antes, ele tinha intenção de matar. Sendo assim, ele seria indiciado por cárcere privado, porte ilegal de arma e tentativa de homicídio.

Em primeiro lugar, o delegado dessa ocorrência não deve ser humano e certamente jamais passou pela situação de desligamento forçado de um casamento, especialmente de alguém a quem amasse de verdade. Muitas pessoas já foram desligadas de casamentos, mas quando não se amou verdadeiramente sai-se ileso. O indivíduo que nunca amou de verdade e entregou-se a um relacionamento de corpo e alma não faz idéia do turbilhão pelo qual passa a mente da pessoa e quantos pensamentos o assaltam a todo minuto, cada um oferecendo um meio mais eficiente para reaver o relacionamento e a vida que ele tinha dedicado e reorganizado em função da pessoa amada.

Portanto, antes de conhecer-se as motivações do autor até se poderia presumir que pretendia matar a esposa. Para tal, porém, precisaria ter um motivo, que diria se pretendia ou não. Por isso antes de saber-se o motivo poderia presumir-se que a mataria. Entretanto, presunção não é certeza. Mas a mente social se tornou tão perversa que em primeira mão presume-se que quem pega uma arma pretende só matar e ninguém se lembra que, se dispusesse de uma arma em uma situação de aperto, a maioria de nós não a usaria para matar, mas para intimidar.

Não é de se admirar que o cérebro de um policial presuma apenas que alguém armado tenha unicamente intenção de matar, pois, em regra, a disposição para matar permeia a vontade dos policiais, sendo inerente ao caráter violento e desequilibrado que muitos trazem da infância. Prova é a facilidade com que sacam suas armas e a freqüência com que têm matando até pessoas inocentes. Aliás, a Brasil responde a muitos processos internacionais por desrespeito aos direitos humanos da parte de policiais e pessoas que usam armas autorizadas pela lei.

Pensemos o seguinte: O vigilante esteve por setenta horas no interior da casa com a mulher a sua mercê com intenção de matar, mas não a matou. Teria entrado com intenção de matar, mas mudou de idéia com o passar do tempo. Porque seria? O que o motivou a mudar de idéia? A diferença entre a pena por homicídio e a pena por cárcere privado, tentativa de homicídio e porte ilegal de arma? Ou teria sido a polícia do lado de fora?

Nem um nem o outro. Uma pessoa sega pela paixão a ponto de ter intenção de matar não se importaria com quanto tempo ficaria na cadeia. Nem mesmo pararia para calcular a diferença entre uma pena e outra. Se ele tivesse intenção de matar teria feito a qualquer momento e a polícia não teria feito nada. Se sua paixão (ou obsessão, como definiram) fosse tão avassaladora a ponto de ter unicamente intenção de matar nada mais importaria para ele, pelo que teria matado e depois tirado a própria vida, cuspindo assim na lei e na prepotência da polícia. Aliás, nos últimos dois casos que os ex-maridos tinham intenção de matar eles nem deram conversa para suas vítimas. Um entrou no salão de beleza da ex-esposa e, ignorando até as câmaras de vigilância, descarregou o revólver na mulher. Outro, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, menos de duas semanas antes do caso do vigilante, entrou na casa e perseguiu a ex-mulher até o quarto, descarregando a arma nela em nas outras duas que com ela estavam. Poupou uma quarta pessoa porque acabou a munição.

Portanto, ao que parece, a polícia não é só prepotente, mas sensacionalista para justificar seus exageros e abusos. Acusar o vigilante do caso de Canoas de tentativa de homicídio é, tanto uma vil calúnia, quanto um desrespeito, um desmerecimento sórdido de sua motivação, bem como de suas intenções, as quais somente ele conhece. O que o moveu a tal desatino não é pouca coisa e quem já foi expulso de um relacionamento sabe quão violentamente o desmembramento familiar e desprezo agridem o ser, destruindo os sonhos, estrangulando as perspectivas e sufocando as boas aspirações.

Claro que ninguém é obrigado a permanecer casado com quem não deseja. Entretanto, não é também direito dispor da vida, dos sonhos, das perspectivas dos outros para o bel prazer e a qualquer momento descartar a outra pessoa mandando-a desligar-se de tudo que construiu, procurar seu rumo, refazer a vida e recuperar o tempo desperdiçado. Isso é crueldade demais. Somente quem não levou um relacionamento a sério sai dele sem seqüelas. Entretanto, algumas pessoas sentem-se tão sufocadas que a reação com que tentam livrar-se da asfixia do desprezo faz-se tão violenta quanto a dor que sentem.

O caso do vigilante de Canoas trata-se de um desatino por ser motivado por uma tentativa desesperada de convencer a mulher a retornar da separação, a qual nele dói como um membro arrancado a força e sem anestesia. Quem não vive a situação emocional do desprezado tem a visão límpida e julga as circunstancias de outra maneira. Todavia, a lógica do desprezado torna-se comprometida por sua ânsia de resgatar a qualquer custo a vida que antes ele tinha e pela qual trabalhou de coração. Sendo assim, o amor da mulher a própria vida pareceu ao vigilante um bom motivo para convencê-la a retornar. É por isso que ele não a matou e jamais a mataria, pois a queria junto dele e foi isso que tentou convencê-la a fazer. Sua mente fraca e, então comprometida, não pensou que, se sendo bom para ela, como vizinhos disseram que ele era, não conseguira atraí-la para sempre, agindo mal é que seria muito mais difícil atraí-la. Então ele cometeu o desatino que tornou sua vida e a aproximação da mulher muito mais complicada.

Infelizmente o dispositivo de segurança da razão do pobre vigilante de Canoas foi suplantado pela depressão avassaladora que o levou a tal desatino, com o que sujeitou suas intenções ao julgamento de pessoas sem sentimento – que se julgam acima das emoções e que presto taxaram seus motivos de obsessão, pois é assim que se minimiza hoje em dia o desejo de preservar um casamento. E o que restou de sua ação desastrosa é que ele tornou-se mais um réu sobre o qual um promotor lançará suas calúnias infundadas e a custas de quem alçará sua carreira. E, por conta desse mesmo desatino, a polícia foi exaltada por ter resolvido sem violência um caso que ela não fez nada para resolver, porque se tivesse feito teria havido violência. A única ação policial efetiva nesse caso foi quando os policiais avançaram qual animais raivosos, fazendo a vez de heróis, sobre um homem desarmado que entregou-se pacificamente.

Wilson do Amaral

Autor de Os Meninos da Guerra e Os Sonhos não Conhecem Obstáculos.