A morte de Radegundis, entre outras

Em 1978 ia eu com uns conhecidos num carro, do bairro do Miramar à Tambaú, descendo a ladeira da Avenida Epitácio Pessoa (em João Pessoa, capital da Paraíba). Eram umas três da manhã e eu estava sentado no banco de trás de uma Brasília com mais quatro pessoas. Uma mulher, que dirigia o carro, começou a fazer gracinhas com a direção enquanto descia a ladeira a uns oitenta por hora, talvez menos. Calmamente, no meio do balanço do carro ladeira abaixo, comecei a lhe pedir para que parasse de fazer aquilo porque, se continuasse, ela poderia nos causar um acidente. Os outros também trataram de me ajudar a dissuadi-la de continuar brincando na direção, mas não adiantou. Logo o carro se chocaria com o muro da ponte sobre o Rio Paraíba ou, mais precisamente, EU me choraria com o muro, tendo em vista que a Brasília se chocara com ele exatamente do meu lado.

Senti a pancada do carro com o muro de concreto em todo lado direito de meu corpo. Por um segundo, entre gritos e dores, lembro de ter visto os cacos do vidro da janela do carro se espatifando e passando brilhantes diante de meus olhos, enquanto ele derrapava desgovernado e capotava pela ribanceira abaixo em direção do rio.

No meio da virada, minha cabeça bateu no teto da Brasília fazendo torcer levemente o meu pescoço. Foi quando tudo escureceu. Sei disso depois que acordei, porque não percebi o lapso temporal entre o momento de minha morte e o de minha ressurreição. Porque senti ter morrido por um minuto ou mais, sem que nunca antes tivesse sofrido um desmaio. Com o incidente - e com o depoimento de meu pai sobre a falta de memória de tempo, lugar ou de ter tido qualquer sensação durante seus cinco dias em coma - percebi que Jesus Cristo, mais uma vez, tivera razão ao afirmar que a morte não existe. Porque, como também descobriu o filósofo francês Descartes, só o que existe é o que temos consciência de que existe, e somente vivos temos consciências. O que existe para nós, portanto, é apenas a sensação da Vida e, com ela, a consciência de que gozamos prazeres e dores. Como a morte nos retira a possibilidade da consciência, e a despeito do que creem espíritas e outros espiritualistas sobre a possibilidade da continuidade de personalidades desencarnadas, não sabemos que morremos quando morrermos, ou se vivemos um dia. Graças ao acidente, descobri que, a despeito de nossa morte, a Vida é mesmo eterna. Porque (preste atenção) estamos todos ainda inevitavelmente por aqui, mesmo depois que gerações e gerações estiveram sobre este planeta a quem chamamos “Terra”, estando elas hoje transformadas em pó.

Até hoje, depois daquele acidente, penso que deveria estar já em outros mundos, mas a Vida ainda me quer por aqui, como a todos e tudo, pelas razões que esconde em Seus mistérios, e então, como uma sombra, ao abrir repentinamente os olhos para o novo momento onde me encontrava, vi da cintura pra baixo um dos tripulantes do carro de pé que, vendo metade de meu corpo para fora do veículo pela janela quebrada, arriscou: “Archidy morreu”.

Para o espanto dele, quando terminou de me arrastar para fora do carro, como se nada tivesse me acontecido, eu me levantei bruscamente, e então senti uma dor enorme no estômago, o que me fez cair de joelhos sobre o mato enlameado da beira do rio, curvando-me a encostar a testa no chão na tentativa de conter aquela sensação horrível de dor e falta de ar.

Quando me levantei percebi que havia muito sangue em minha roupa e já um número considerável de curiosos em volta, gente que viera de suas camas naquela madrugada pra saber que alvoroço era aquele que lhe tinha tirado o sono, entre outras pessoas que, naquela hora, seria difícil imaginar de onde tinham vindo de repente.

Em pouco tempo, levaram-me para um hospital, cheio de dores e escoriações. Depois dos exames, fui liberado e cheguei ao amanhecer em casa, carregado cheio de muitas dores por outros dois sobreviventes do acidente até os braços de minha mãe que, como aqueles antigos reis, meu pai, minha filha, entre muitos outros, também já não existe mais sobre este mundo.

Relatei o que ocorreu comigo naquele ano porque recentemente soube da notícia do falecimento do trombonista paraibano Radegundis Feitosa, junto com outros integrantes do Sexteto de Trombones da Paraíba, num violento acidente de carro, e então fiquei imaginando o que ele deve ter sentido até perder definitivamente os sentidos.

Não fui amigo dele, embora talvez, se oportunidades tivessem favorecido outros nossos encontros, ele tivesse sido um grande amigo meu. Estive mais próximo dele numa ocasião, numa cidade do interior da Paraíba, quando jurado num concurso de bandas marciais organizado por meu irmão, Sérgio Picado, e seus amigos. Conversamos e eu lhe disse o quanto admirava seu talento, enquanto ele confessava já ter muito ouvido falar dos meus. Ele me falou sobre grandes músicos que conhecera enquanto estivera estudando nos Estados Unidos – tendo sido considerado um dos melhores trombonistas do mundo – e então, co-produzindo o primeiro disco do compositor pernambuco-paraibano Zé Trovão, o convidei a participar da gravação de uma de suas músicas. Por razões de agenda, ele não pôde nos dar o prazer de sua presença, e aí não soube mais dele até a notícia do acidente que o matou.

Não sofri sua perda com a intensidade conferida àqueles que compartilharam mais intimamente de sua grande presença. Mas fiquei abalado com MAIS a morte dele, já que a Morte tem levado com frequência pessoas que, de alguma forma, estiveram um tanto próximas de mim. Pensando nas agonias do acidente que sofri, de minha rápida morte depois delas e da inconsciência de meu pai durante seu coma, me conforta saber que, malgrado sua intensa agonia, aquele que conhecemos como Radegundis também já não sofre mais nada que diga respeito às amarguras e dores desta vida, embora ele também não possa usufruir mais de seus prazeres – sempre muito fugazes, todavia, sendo o tempo transcorrido com dores percebido sempre “maior” que o tempo dos prazeres.

Depois que o carro onde viajava Radegundis e seus amigos bateu num animal, capotou e explodiu, não sei quanto tempo ele levou para morrer depois que conseguiu sair do carro com o corpo em chamas, como me contaram ter sido o episódio. As circunstâncias de sua vida não lhe reservaram uma morte tranqüila na velhice, como disseram ter sido o falecimento recente do escritor português José Saramago, ou o de meu avô paterno. Mas, embora morrer queimado seja talvez uma das piores formas de morrer, Radegundis e seus companheiros de vida e morte também não tiveram o desprazer de passar anos em cima de uma cama, vítimas de certos acidentes vasculares cerebrais, ou como passam sofrendo muitos cancerosos – a despeito de que sua agonia deve ter sido intensa, tendo sido provavelmente “uma eternidade” o tempo decorrido entre a sensação de suas dores e sua morte. .

Claro que aqui procuro confortar minha própria angústia em relação à morte de Radegundis, de seus amigos e a tristeza daqueles que, seus mais íntimos, perderam para sempre sua companhia. Mas agora, depois de ter experimentado a Vida por um tempo, tudo passou também para Radegundis. Como muitos bons como ele, ele nos deixa saudades. Enquanto esteve entre nós, contudo, com a Música, Radegundis não apenas nos fez conhecer seu grande talento: também nos disse do amor intenso que sentia pela grande Harmonia que, do caos à ordem, ele tão bem nos fez saber existir ao tocar seu instrumento.