Homenagem a Adoniran Barbosa

Então, há cem anos nascia o maior poeta popular da cidade de São Paulo. Nascido em Valinhos, filho de imigrantes italianos, o nosso João Rubinato logo se transferiu para a capital, uma cidade que despontava para a modernidade num ritmo frenético, uma São Paulo do café com indústria e operariado sem muitas ilusões, sem muito brilho, mas com grande espírito de luta.

São Paulo de 1910 era ainda uma cidade pacata que teimava em florescer. Tempos dos italianos , que, mal chegados ao Brasil, foram direto para o oeste, para as fazendas do café, na tentativa de fazerem a América. Sonho criado e conservado nas casas, nas conversas e nas incertezas de uma Itália em crise. Foi sobretudo em São Paulo que os italianos se entenderam como tal. Até porque, antes da Unificação de 1870, os sete reinos independentes e autônomos não tinham mecanismos para definir a sua identidade. Cada reino era um espaço, um universo, com as elites no poder e as massas do outro lado da vida e dos desejos.

Nos tempos de Adoniran menino a cidade de São Paulo tinha ainda as suas ruelas, os seus becos, as vilas do Ipiranga, os cortiços do Brás e as quitandas de todos os bairros, mas ainda não existia o mercadão da Cantareira. Vendia-se a granel e o fumo de corda enrolado num pedaço de palha, junto com dois dedos de café num copo de bar suavizavam o paladar daqueles que, muitas vezes, tinham vontade de alguma comida... e tudo se resumia apenas no desejo.

Muitas vezes eu pensei na sua coragem de apresentar a vida dos trabalhadores pobres naqueles tempos incertos, as saudades, a amizade, o humor, o amor, a perda, a solidariedade e a lealdade.

Como ninguém Adoniran soube nos apresentar uma maloca, que ficou tão saudosa, mas que fora substituída por um “adifícil arto, um palacete assobradado”. Os moradores daquela maloca foram apreciar a demolição e cada “tauba que caía doía no coração” . Apresentou a Iracema, que morreu atropelada porque atravessou na contramão num tempo em que os carros já transitavam, quem sabe a toda velocidade possível. Adoniran nos apresentou a Eugênia e o viaduto Santa Efigênia, mas a Eugênia tinha prometido ir embora para o interior caso o viaduto fosse mesmo construído. Mas o “Trem das Onze”... esse não tem jeito! Impossível alguém desconhecer essa letra e o sexagenário conjunto “Demônios da Garoa” interpretando tão lindamente! Nada mais representativo para a vida do operário da primeira metade do século XX que “Torresmo à milanesa”... “o que você trouxe na marmita, Tito? Trouxe ovo frito. E você, Beleza, o que é que você trouxe? Arroz com feijão e um torresmo à milanesa da minha Tereza.” E foram almoçar “sentados na calçada, depois puxar uma paia, andar um pouco prá fazer o quilo”.

Mesmo tendo o seu tempo dividido como engraxate, entregador de marmitas, operário, pintor , ator, o nosso poeta das almas da cidade marcada pelo desenhar de um gigantismo sem conta ousou ilustrar a mais cosmopolita das capitais do país. A cidade que acolheu a todos, de todas as partes desse planeta e em todos os tempos. Adoniran teve a coragem e a sensibilidade de apresentar ao grande público o Brás, a Mooca, o Jaçanã, o Bixiga até aos intelectuais, que hoje estudam o seu Português mal falado, denunciando com muito bom humor um Brasil quase sem escolas.

O nosso Adoniran abandonou o nome de batismo porque “João Rubinato não dava samba” . Mas inventou e deu vida ao Arnesto, ao Nicola, ao Mato Grosso e ao Joca, assumido amorosamente a defesa dos mais pobres, mas com alguma dose de conformismo, pois acreditava que “Deus dava o frio conforme o cobertor”.

Dia desses eu passei pela Praça da Sé e parei para olhar uma parte da lateral da igreja onde eu tenho uma foto dele em branco e preto. Parei um pouco, solitária. Olhei e pensei: “O Adoniran esteve aí”. Fui visitar a rua que leva o seu nome no Bixiga. Rua pequena, simpática, acolhedora e com alguma poesia encalacrada pelas portas e janelas. Fui ao seu encontro na Praça Dom Orione e me deixei fotografar abraçada à sua estátua; perdão: estauta. Passei a mão carinhosa e demoradamente pelo seu rosto e chapéu. Mas era só uma idéia do que ele foi.

Obrigada, mas muito obrigada mesmo por ter me ensinado tanto a enxergar a cidade, as pessoas, os olhares, as rugas estampadas nos rostos de milhões de paulistanos, operários, pobres, sofridos e boêmios, a interpretar as ruas e alguns sonhos! Sobretudo por amar tão profundamente o nosso Bixiga! Aí no céu, canta uns sambinhas prá São Pedro, canta! Ele vai gostar do “Trem das Onze”, do “Samba do Arnesto”, de saber do casamento do safado do Moacir, que já era casado cinco veis lá no estado do Rio. Acende o candeeiro, alumeia o terreiro e faz um ensaio geral, com uma boa roda de samba com os anjos e santos regada a uma cerveja gelada... com a pizza de um Bixiga celestial.

Afinal, vocês estão ai prá beber ou prá conversar?

ASS. VERA MORATTA.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 05/09/2010
Código do texto: T2480722