O escritor - para Milton Hatoum

O escritor

Para Milton Hatoum

Foi no Festival Literário da Mantiqueira, em 2007, que o vi, pessoalmente, pela primeira vez. Já havia lido dois livros seus. Eu sabia quem ele era. Nós não fomos apresentados, mas fui agraciado com a oportunidade de permanecer anônimo e me foi dado o direito de ficar apenas observando, sossegado, seu jeito admirável. Eu estava almoçando com a minha mulher quando o percebi discreto, na mesa ao lado. Ele estava com a família. Mulher, dois filhos pequenos e uma babá. Algumas pessoas paravam, puxavam conversa, pediam autógrafos em livros. Não deixavam o escritor almoçar tranquilo. Ele não se importava. Atendia a todos com atenção. Apresentava sua família, inclusive a babá. As pessoas pediam para que ele tirasse fotos com elas. Ele pacientemente autografou livros, tirou fotos e sorriu pacientemente como um monge. Sua esposa também foi extremamente gentil com todos. E eu fiquei lá, observando e de alguma maneira, tentando permanecer solidário. Sabia que ele precisava comer logo, tinha uma mesa na Tenda dos Autores esperando por ele. Não poderia se atrasar. Logo depois entraria o convidado de honra do evento para fechar à tarde literária; um outro escritor muito mais popular. Eu estava ali para vender meus livros na rua, de mão em mão e, para assistir as palestras.

Quando o escritor terminou seu almoço, sua esposa o beijou carinhosamente e desejou boa sorte. Ele levantou, pagou sua conta e seguiu para o local onde aconteceria a palestra. Eu fui atrás. Seguindo seus passos serenos pelas ruas de São Francisco Xavier. A tarde começava a cair, a neblina e o frio da Mantiqueira, junto ao pôr-do-sol compunham uma linda paisagem que eu e o escritor admirávamos. Talvez, ele, assim como eu, estivesse imaginando uma boa história para narrar naquele belo cenário.

Quando o escritor ocupou seu lugar, eu sentei na primeira fila. Esperamos. As pessoas foram entrando. Ocupando os lugares enquanto ele permanecia calado, discreto e paciente. Era clara sua postura distante de qualquer tipo de badalação, mas ao mesmo tempo, visível sua gentileza com as pessoas que solicitavam sua atenção, como aqueles que insistiam em cumprimentá-lo como se fossem velhos conhecidos. Eu me senti um pouco mais forte, de alguma maneira, com coragem para quando saísse dali, oferecer meus livros na rua de cabeça erguida. O que antes fazia com muita timidez. Pela primeira vez me vi, também, um escritor. O auditório não chegou a ficar completamente lotado. A fila lá fora, para a palestra do próximo escritor era muito maior. Ninguém dessa outra fila quis entrar. Não queriam perder seu lugar para ver o escritor mais famoso. Depois que o mediador o apresentou, ele começou a falar, pausadamente. O tema era: “O escritor por ele mesmo”. Primeiro discorreu sobre sua origem libanesa. Depois sobre sua infância em Manaus. Concluiu a palestra comentando sobre os dois anos em que viveu nos Estados Unidos, quando foi convidado para lecionar Literatura Inglesa na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Pouco falou sobre seus livros. Comentou muito mais sobre sua admiração por Machado de Assis e Graciliano Ramos. Quando terminou, ele foi para a sessão de autógrafos, naquela época, do seu quarto livro. (Hoje ele tem cinco publicados, quatro deles agraciados com o Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira). Eu comprei os dois livros que não tinha, e segui para a pequena fila. Enquanto ele fazia a dedicatória, eu aproveitei para elogiar seu trabalho. Quando me entregou o livro, ele levantou a cabeça, sorriu e agradeceu minha presença e a oportunidade de ter-me como leitor. Eu não consegui dizer mais nada. Fui embora pensando em tudo que eu poderia ter dito e nas perguntas que queria fazer e não fiz...

No ano seguinte, nos encontramos na Flip, em Paraty. Um encontro rápido na Casa de Cultura, onde ele falou com toda propriedade sobre Euclides da Cunha. Cumprimentei-o, e mais uma vez não soube o que dizer. Mais um ano se passou e em 2009 o encontrei, novamente, na Flip. Dessa vez, ele era o convidado principal, ao lado de Chico Buarque que, elogiou muito seu trabalho, inclusive, proferindo se tratar do maior escritor brasileiro em atividade. Eu fiquei orgulhoso por isso e passei a fazer minhas as palavras de Chico Buarque.

Recentemente nos encontramos de novo, dessa vez em Poços de Caldas. Eu estava entre os “novos autores” e ele chegou para a cerimônia de encerramento do evento, ao lado de Rubem Alves, do prefeito da cidade e do governador de Minas Gerais. Dessa vez, pude conversar um pouco com escritor, por dez ou quinze minutos, enquanto tomávamos um café. O prefeito o aguardava para jantar. Falamos sobre a cidade e, claro, sobre literatura. Tive até a oportunidade de falar sobre o meu projeto literário. Depois perguntei por que era tão difícil encontrá-lo nos eventos literários. E ele me respondeu com a calma de sempre: “Porque o que tem que se destacar são os livros. Um escritor não pode aparecer mais que seus textos.” Soube que seu livro: “Dois irmãos” será filmado em mini-série para a Rede Globo, mas o escritor não quis falar sobre isso. Disse que seu único feito foi ter escrito o livro. A mini-série era com os diretores e atores. Ele não terá nenhum envolvimento. Recentemente, esse mesmo livro, foi eleito o melhor romance brasileiro dos últimos quinze anos. Mas ele também não quis falar sobre isso, apenas se restringiu a dizer que existiam outros romances tão bons quanto e, até melhores. Antes de nos despedirmos ele ainda me disse: “Não tenha pressa. Continue escrevendo e, sobretudo, lendo. Leia muito. Leia de tudo”.