MONA LISA

MONA LISA*

Sorriso enigmático. Olhar de esguelha. O que quer uma mulher? Não sei, nunca quis me aventurar, temo não compreendê-la. Desconfio que nem ela sabe falar do que deseja. Cansei de perguntas, desloquei minha libido para a pesquisa. Os por quês da infância se arrastando pela vida afora, derramando-se sobre todos os assuntos, infinitamente. E você fica aí rindo. Pra mim. De mim. Ah, Caterina, desde que aquele abutre – símbolo da maternidade, conheço bem a fábula sobre o único sexo dessa ave, e sua autofecundação – desceu sobre mim em meu berço, abriu-me a boca com a longa e doce cauda, fustigando-me várias vezes os lábios, nunca mais fui o mesmo. É só uma recordação, bem sei, na verdade um resto de lembrança que talvez preencha a lacuna jamais explicada. Aquela coda invadindo minha boca, fantasia de fellatio, alusão à amamentação, primeira fonte de prazer. Uma cena de rara beleza. Eu, filho de abutre, nada mais. Como os primitivos, sem saber o que tem a ver o pai com a origem dos bebês, com o nascimento. Pensei, muitas vezes, na ausência dele, que você era tudo: a MUT egípcia, dotada de falo, completa, embora quando trocávamos de roupa no mesmo aposento isso não se revelava... Queria você me beijando apaixonada e repetidamente. Por que sorri assim? Sorriso notável, fascinante e misterioso, reencontrado no rosto estranhamente belo da florentina Mona Lisa Del Giocondo. Monolítico retrato. Sorriso leonardiano, assim conhecido para sempre. Por sua causa passei, em meu ateliê, a admitir só alunos bonitos. Não me importava talento, nenhum se tornou pintor de importância... E como chorei sua morte! Com tristeza, mesmo sem derramar uma lágrima. Sorrindo, como você na tela. A perda do meu primeiro – e único – amor... Esfinge-sorriso, contraste entre reserva e sedução, ternura e sensualidade, destruindo quem não a decifra: eu. Longos anos pintando, e ao final, você ainda estava inacabada. Não fui capaz de entregá-la a quem a encomendou, levei-a comigo numa viagem à França, onde meu patrono a adquiriu para o Louvre. Que poderoso fascínio exerce sobre mim! Reproduzido em todas as minhas criações, não consegui me libertar desse sorriso distante... Mulher idealizada e nunca possuída. Que me cumulou de carícias só para se consolar da ausência de um amor. Não me canso de olhá-lo, mesmo distante de mim, esse quadro da pobre camponesa que deu à luz o filho cujo destino seria pintar e sofrer... E tudo o que eu queria era ser/ter l’ucello (um pássaro, e também o órgão masculino). Na impossibilidade, construí vários brinquedos mecânicos, modelei animais em cera: todos voavam. Dotei de asas um lagarto de verdade, com ele me divertia em assustar os amigos e exorcizar fantasmas. Difícil me desligar da infância, quando me entreguei à carinhosa sedução de seus beijos, despertando cedo minha sexualidade. E para quê? Preso para sempre à zona erógena da qual nunca mais me libertei: a boca. A esse sorriso.

*Uma releitura do texto de Freud “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”

Ana Guimarães

Ana Guimarães
Enviado por Ana Guimarães em 04/11/2006
Código do texto: T282191