AMOR SOB A MARQUISE

Em homenagem àqueles que, apesar dos pesares, ainda pulsam um coração...

Centro de São Paulo. Coração da cidade.

Num daqueles dias em que resolvendo problemas comuns ao cotidiano sequer paramos para observar a vida.

E de fato, embora tudo acontecesse por ali, as pessoas se cruzavam mais indiferentes que os próprios pássaros ...no céu.

Mas também, aquilo não era o céu!

Na praça, a polícia fazia sua ronda atrás dos "trombadinhas', uma estação de televisão mostrava algo inusitado, uma anciã tropeçava e caía na calçada esburacada e se levantava sozinha; as pombas sobrevoavam ao odor penetrante de uréia que exalava de toda parte, um psicótico discursava um monólogo em alto tom para ninguém ouvir, feridas expostas esmolavam por trocados, camelôs estridulavam pelas vendas, comerciais humanos perambulavam..."compro e vendo seu ouro"!

"Ouro?" - pensei- "que antítese!"

De repente, cruzo uma marquise e entre tanta indigência sobre o asfalto, um velho cobertor fino e surrado se movimentava sozinho. Pensei ser um animalzinho, então, discretamente me aproximei.

Sob a coberta, dois corpos, ainda jovens, embora desgastados, acariciavam-se alheios a tudo.

Ato contínuo, um sino meio longínquo, talvez o da igreja da Santa Ifigênia badalava as quatorze horas.

Todas as cenas dos Homens urgem por bençãos.

Ali, em ato realístico, pude sentir a firmeza delicada dos movimentos das mãos que se buscavam, numa exposta e sedenta intimidade da tragédia humana!

Senti que o beijo insípido traduzia a decantação do desespero, na mazela da miséria absoluta!

Era a encenação da ópera mais realista que já pude presenciar na vida, a céu aberto!

Enfim...aquilo já era o possível céu!

Logo mai adiante, quase ao lado, numa concorrência desleal, o TEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO vendia seus ingressos para o próximo espetáculo da noite.

Baixei a cabeça e, num ato de pleno respeito aos roteiros da vida, segui meu objetivo.

"Por favor, o senhor poderia me informar onde fica a Igreja do LARGO DE SÃO FRANCISCO?"

"Olha aí do lado, ô moça, não enxerga não?" -me respondeu um sisudo camelô.

Sem perceber, ele acabara de me tecer um elogio.

"Ô" moça"...

Bem, nem os infernos são perfeitos!

Entrei na antiga igreja, naquele meu belo oratório de infância sempre em oração junto ao meu pai, hoje tão dilapidado pelo tempo quanto minha alma pelo espetáculo da vida.

Orei um "Pai Nosso"... empurrei um gole d’agua gelada que levava comigo, comprado num bar da esquina.

Ali, na saída da igreja, foi aonde finalmente encontrei a imagem de São Francisco de Assis , que há tanto tempo eu procurava para presentear um amigo colecionador do tal santo.

"É preciso colecionar milagreiros mesmo" pensei comigo...

Ajoelhei, fiz o sinal da cruz, respirei fundo e voltei para a vida.

(Conto verídico)

Sp,13/11/2006