A vida de Alfonso Bernal

“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.

Fernando Pessoa

O título deste poderia ser “A morte de Alfonso”, para referendar o recente falecimento de um dos mais íntimos amigos de meu pai. Mas falar sobre sua morte não terá graça porque a morte não é nada.

Dizer que “somos todos iguais” a partir da observação de que todos nós morremos é tornar nossas condições de vidas iguais a dos animais, insetos, vermes e plantas, entre outros seres microscópios que, a despeito da potência devastadora de alguns, tem também duração existencial limitada. Mesmo as estrelas, talvez os “seres” que mais tempo vivem no universo, morrem – embora suas mortes pareçam causar atrativas inescapáveis passagens para outros universos. Mas será melhor atribuir-nos similaridade no reconhecimento de que todos os que vivem são iguais na dependência dos recursos vitais que nos promovem existir essa força infinita chamada “Vida”, a que damos status de “Deus”.

Apesar do título deste poder sugerir que eu vá escrever uma biografia sobre aquele artista colombiano que adotou o Brasil e a Paraíba como sua primeira pátria – tendo aqui constituído família e amigos – irei apenas tentar contar minhas impressões daquele que, para mim, entre outros, foi uma expressão humana viva, intensamente apaixonada, de amor à Vida.

Luiz Alfonso Dias Bernal foi seu nome completo. Natural de Zipaquirá, na Colômbia, ele viveu seus últimos 50 ano no Brasil, particularmente na cidade de João Pessoa, capital da Paraíba. Foi Arquiteto, artista plástico e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde assumiu diversos cargos, entre eles Diretor Fundador da Galeria de Arte Pedro Américo, Coordenador do Núcleo de Arte Contemporânea (NAC), Decano e Chefe do Departamento de Artes da UFPB e Diretor da Pinacoteca da UFPB.

Publicou o livro “Marcas” – o qual ajudei a editar, tendo escrito seu texto de apresentação – onde reuniu rica coleção de reprodução de sua arte, demonstrando sua dedicação e conhecimento das diversas técnicas da Gravura.

Boêmio romântico assumido, também companheiro e amigo do não menos saudoso boêmio Virgínius da Gama e Melo, Alfonso conhecia meu pai desde que eu, meus irmãos e minhas irmãs éramos pequenos. O casal de filhos de Alfonso, Alfonso Filho e Regina, junto com Emy, sua esposa, sempre ia a nossa casa, e nós na de Alfonso, que gostava de mim o suficiente para que demonstrasse sua satisfação em me tornar seu genro. A sorte de Regina é que tal estímulo acontecera ainda quando éramos crianças e então ela se casou com um cara melhor do que eu, embora depois que meu pai se foi, como antes de ele ir, Alfonso Bernal continuou me considerando um de seus amigos.

Entre seus filhos, Alberto Dias Bernal, o mais novo – a quem ainda hoje reconhecemos como “Betico” – foi quem herdou o talento do pai para a produção de pinturas, sendo reconhecido por Alfonso como um artista “mais original” que ele.

Ao longo das relações de meu pai com o amigo Alfonso Bernal – indicado por Archidy Picado a ser um dos professores que comporiam o quadro de docentes do então recém-criado curso de Artes da UFPB – estive com Alfonso em muitas situações diferentes, na casa dele, em exposições dele e de meu pai – muitas das quais Alfonso ajudou a organizar – e em mesas de bares. Mas foi mesmo inesquecível o dia em que viajamos eu, ele, meu pai e “Afonsito” (como chamávamos o filho mais velho dele, que, como eu, tem o nome do pai) para a cidade de Cajazeiras (PB), onde acontecia um festival de artes.

Passaram os anos, um dia Alfonso me pediu para ajudá-lo na publicação de seu outro livro, curiosamente intitulado “Tópicos & Picadas”. Nele, ele reuniu algumas crônicas e poesias para nos contar sobre as freqüentes viagens que fez ao seu país de origem e suas relações em família, com quem fizera muitas viagens à Colômbia, muitas de carro, “país onde tudo se faz”, como escreveu em seu livro, sendo-lhe o Brasil o “país onde tudo se pode” – ambos “no continente do amanhã”.

Depois de relatar suas aventuras dentro de um avião onde voava à Bogotá e seu cotidiano aventureiro na cidade onde, num restaurante, Alfonso fora confundido com o escritor Gabriel Garcia Marques, Bernal entra no capítulo onde exporá sucintas reflexões sobre sua vida. Entre seus interesses imediatos, sua paixão pela boemia é sobre que primeiro escreveu Alfoso:

“Na boemia de minha existência, e ao longo de todos estes anos, lentamente me embreago com o néctar do bom-viver misturando ousadia com disciplina, responsabilidade com tristezas, realizações com frustrações, sonhos com pesadelos, riqueza com pobreza e ambição com humildade. Sempre gozei o efeito duradouro de um grande amor, uma grande família e a certeza de viver tudo novamente”.

No capítulo onde agradece particularmente a sua esposa Emy por seu amor e dedicação, declara: “Minha esposa, minha vida. Meus filhos, minha riqueza. Meus netos, meu futuro” – não se cansando de homenagear a família que ele ajudou a criar e que, muito acima de suas falhas humanas e de suas conseqüências perdulárias, como não poderia deixar de ser, sempre lhe dedicou tanto amor e dedicação.

No recebimento do e-mail que anunciava a morte de Alfonso, que me fora enviado por seu filho Alfonsito, soube que Bernal dissera não estar tão triste em estar próximo de morrer por finalmente ter a oportunidade de reencontrar seu amigo Archidy Picado.

Como o amigo Archidy Picado, apesar de Alfonso ter tido uma vida mais longa e produtiva, reconhecendo também a tendência natural dos homens de não se satisfazerem com o pouco ou o muito que conquistaram durante a vida, Alfonso escreveu, num trecho de seu poema “Pardal”:

Oh, Deus: triste destino deste a mim!

Permita que o pardal aprisionado

Destrua a carcaça de meu peito

E voando livre como o vento

Ponha fim a todo este tormento.

Diz o cronista bíblico que até mesmo os pardais encontrarão abrigo nas moradas do Senhor.

Faz sete dias que o pardal de Alfonso se libertou e partiu.

Espero que tenha encontrado o ninho onde faz tempo mora aquele outro pássaro seu amigo.