"Funiculì, Funiculà" – uma breve história da imigração italiana em São Paulo.

Inesquecível foi aquela noite! No bairro italiano do Bixiga estava acontecendo a tradicional festa de Santa Acheropita. Noite agradabilíssima de sábado, naquele julho de 1981. Há mais de oito décadas aquela festa das tradições ocorre na principal rua do bairro – a 13 de maio, mas aquela noite foi primorosa em trazer memórias amorosas, desejosas de abraços com os antepassados e a vontade de dizer a todos eles o tamanho da sua importância naquelas vidas e na construção de uma nova história.

Naquela noite, em que a feia fumaça não apagava as estrelas, um senhor já idoso, de terno um tanto gasto e gravata borboleta, de ralos cabelos brancos pelas laterais, cantava entusiasticamente, de coração brilhante e maior que o próprio peito, o "Funiculì, Funiculà” a partir de um palco instalado defronte à igreja que marcou todo o exercício da fé daqueles primeiros italianos chegados a São Paulo.

Mas o amor que aquele cavalheiro – sim, era um cavalheiro - colocava na melodia parecia um hino à vida, vida de lutas e uns tantos fracassos, saudades e desafios, umas tantas perdas e desilusões na estrada de todos aqueles que sonhavam em “fazer a América”.

A música cantada magistralmente foi escrita em 1880 em dialeto napolitano por Giuseppe 'Peppino' Turco e musicada por Luigi Denza. Ela foi composta para celebrar a abertura do primeiro bonde, o funicolare do Monte Vesúvio e logo se tornou um grande sucesso.

Mas para nós, descendentes, a música exala uma alegria inexplicável, que arrepia, provoca a memória dançante e nos remete aos primeiros tempos de italianos em São Paulo.

O final do Século XIX foi o marco de grandes dificuldades para os italianos na sua região de origem.

Naquele momento, a crise econômica se agravava. Rapidamente. Em 1871 a Itália passou pelo processo de Unificação liderado por Cavour e Mazzini, e esse processo havia se iniciado duas décadas antes. Assim, os antigos sete reinos independentes e autônomos passaram a ter uma unidade política e econômica e os novos impostos criados acabaram por levar um grande número de trabalhadores a uma situação de imensa dificuldade. E a crise foi de intensidade diferente nas diversas regiões da Itália.

O norte foi a primeira região a ser abalada por essa instabilidade econômica. A partir do desenvolvimento do capitalismo e nascimento das fábricas, possível em função do industrialismo que se expandia pela Europa, os agricultores e artesãos passaram a conhecer de perto o desemprego, gerando uma situação de grave insatisfação social. Nesse momento de transformações políticas e econômicas, os produtos industrializados ganhavam o mercado, em benefício de uma burguesia em busca de lucros rápidos, de tal forma que os artesãos e pequenos comerciantes foram perdendo os seus espaços.

Foram exatamente esses os profissionais - pequenos proprietários, arrendatários ou meeiros - que constituíram grande parte do contingente migratório do final do século XIX. O que essas pessoas buscavam ansiosamente era uma maneira de fugir da pobreza. E o sonho de “fazer a América” foi se cristalizando, redesenhando a vida desses nossos antepassados, que optaram por enfrentar todas as tormentas de uns tantos dias a bordo do vapore que atravessaria o Atlântico em condições precárias e com pouca água e comida.

Os primeiros italianos a partir em direção ao Brasil durante o período conhecido como época da “grande imigração” (1870 a 1920) tiveram como origem a região do Vêneto, correspondendo a cerca de 30% do total dos imigrantes. Outras regiões de onde partiram foram a Campânia, a Calábria e a Lombardia. E, nesse período, mais de um milhão de italianos chegaram ao porto de Santos e se deslocaram até a Hospedaria dos Imigrantes – hoje o magnífico Memorial do Imigrante – no bairro da Mooca.

A vinda desse enorme contingente foi interessante ao governo italiano, que não tinha como resolver de imediato a questão do desemprego. Esse mesmo governo também sabia que os seus filhos, trabalhando no Brasil – terra do café e das novas possibilidades – enviariam algumas somas para o seu país natal, para os parentes que não abandonaram o velho chão e esses valores seriam importantes para uma eventual redução dos efeitos negativos da crise interna.

E no Brasil daqueles tempos, o imigrante foi providencial para os donos do poder, pois no final do século XIX o Brasil também sinalizava algumas mudanças. Tempos do auge da produção do café no oeste paulista e também tempos de uma suposta libertação dos escravos. As leis abolicionistas eram defendidas pelas elites políticas e intelectuais, pelos filhos de latifundiários, estudantes de Direito, recém- chegados de uma Europa fervilhante de inovações. Liberdade era a palavra-chave para se pensar num Brasil novo, republicano e branco. Sim, porque o ideal de branqueamento social era aceito pelas elites pensantes; isto é, acreditava-se que se o Brasil fosse branco o progresso inevitavelmente viria. E rápido. Assim, nada melhor que abandonar o negro ao seu próprio destino, descartado, visto como “inculto” e que nada acrescentaria ao desenvolvimento de um país pretensamente novo, quase republicano.

Substituir a mão-de-obra negra para a livre e assalariada era de interesse imediato. Mas havia também um outro objetivo estratégico com a vinda dos italianos: a colonização, que visava ao aumento da população branca do país com propósitos políticos e estratégicos de ocupar e defender espaços antes considerados vazios.

Nesse contexto vieram os nossos antepassados.

Os Estados que acolheram os imigrantes italianos foram São Paulo, que recebeu aproximadamente 70% do contingente, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

A princípio, a maioria dos recém-chegados à “terra prometida” seguiu para as áreas rurais, ligadas à economia cafeeira. O deslocamento para a cidade caracterizou uma segunda etapa dentro do grande movimento da chegada dos italianos ao Brasil, visto que, apesar da grande penúria pela qual passavam nas fazendas, não aceitaram as condições degradantes de trabalho, muito próximas à escravidão. Assim, um grande número de italianos passou a se deslocar para a capital à procura de trabalho mais digno. E exerceram as mais variadas funções: alfaiates, padeiros, pequenos comerciantes, sapateiros, engraxates, pedreiros – até porque trouxeram a construção em alvenaria para o Brasil.

E o nosso bairro paulistano do Bixiga exala essa história, nas memórias, nas conversas que ainda teimam felizmente em acontecer ao redor de uma boa mesa coberta com tecido xadrez em branco e verde ou branco e vermelho, com a pasta al pomodori, o vinho e um doce encharcado de lembranças.

No Bixiga existe uma pulsação de amor demais que compreendi há anos, ainda muito jovem, assistindo uma minissérie e a grande atriz Lélia Abramo, que chegou a sofrer a fome nos tempos da ditadura de Mussolini, chorava sentada num banco da Igreja de Santa Acheropita, e dizia que não era possível viver longe da Itália.

Lélia, toda a Itália se encontra no Bixiga, em todas as calçadas, na atmosfera.

Seja na igreja, nas festas, nos casamentos, nos sobrenomes, nos batizados, no comércio de calçados, nas pizzarias, no trabalho magnífico de resgate cultural realizado pelo Sr. Walter Taverna, nas saudades do Armandinho Puglisi. A história está ali, registrada nos olhares, nos nomes das ruas, no café Piu piu, naqueles cortiços do início do século passado, no samba de Adoniran, na sua “estauta” colocada na praça Dom Orione, na feira de antiguidades de domingo. Tantas vezes a tarantella provocou o despertar para tantas primaveras! O Funiculi funiculà agitando todas as células de qualquer pessoa conhecedora das suas raízes. Todas as paixões, Lélia, se encontram no Bixiga, porque simplesmente o Bixiga é o centro emocional de São Paulo quando o assunto é cultura, memória e esperança, “come um sogno de bambino, que può um giorno abracciare il mondo”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 04/10/2011
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