O CALCANHAR SOCRÁTICO

Quem me dera o estilo perfeito que produzisse como no futebol, a catarse que emociona a criança e o velho, o rico e o pobre, o branco e o negro, no momento mágico em que a jogada ou o gol excepcional acontece. Tal capacidade me serviria para prestar uma homenagem justa através desta crônica de saudade, a uma legenda do futebol verde-amarelo.

Sócrates e sua geração de estetas da bola nos fizeram sonhar, vibrar, sofrer e chorar nas Copas de 1982 e 1986. Na Canarinho, repleta de craques, ele se destacava por seu porte longilíneo, cabelos negros e desgrenhados, além de uma barba cheia, que no conjunto, lhe emprestavam o aspecto mítico de um grego; mas era a elegância ao desfilar em campo - bola e sabedoria – com a autoridade de um capitão, que marcou para sempre a imagem deste gigante jogador brasileiro. Sócrates, como o famoso filósofo homônimo, fazia de cada partida um verdadeiro banquete, servindo e saciando os seus companheiros com o savoir-faire de um verdadeiro mestre. De passe em passe construía maieuticamente a jogada que levava quase sempre à conclusão lógica e inevitável do gol, e de vez em quando se permitia a si mesmo, o argumento do drible duplo seguido de tiro certeiro que resultava em gol antológico, como registram as imagens da partida contra a URSS, na Copa de 82. Um gol magistral, um gol Socrático, na melhor acepção do termo.

Muitos e variados eram os recursos deste sábio do futebol, mas uma jogada simbolizava toda a sutileza e genialidade de seu toque singular. Se o calcanhar de Aquiles passou para história e tradição como ponto de fragilidade humana, era justamente o calcanhar de Sócrates, a sua arma secreta, o seu toque de Midas, ouro do mais alto quilate para os que admiram a beleza de uma jogada, em tudo, dourada. Quem quer que repita o gesto, pelo menos no Brasil, evocará instantaneamente na memória e in memoriam, a figura do inesquecível Dr. Sócrates.

Dotado de uma inteligência invulgar, muito acima da média dos jogadores brasileiros, o “Doutor” fez sentir a sua liderança no Timão, receitando em plena ditadura militar, o conceito de Democracia Corinthiana, movimento que repercutiu para muito além das fronteiras das quatro linhas de um gramado. Sócrates Brasileiro foi um dos que lutou pela redemocratização do país, e penduradas as chuteiras, continuou fazendo de seus comentários em colunas de jornais e em programas esportivos, motivos para provocar a reflexão, a análise do atual momento futebolístico, em vésperas de Copa do Mundo, na pátria de chuteiras.

Nosso Sócrates conquistou títulos dentro e fora dos campos de futebol; fez de sua filosofia de vida uma aventura epicurista, perigosa, mas sempre consciente do mal que a si mesmo fazia, como ficou claro em várias entrevistas. Pretendeu mudar a partida já nos acréscimos finais, não teve forças nem tempo, e como o lendário Garrincha, foi finalmente vencido pelo alcoolismo, sua cicuta. Seja como for, o “Magrão” o “Doutor” o “filósofo-jogador” sai do campo da vida para o campo da memória, deixando a marca registrada e a assinatura de seu insofismável calcanhar.

Marcos Cavalcanti

Marcos Cavalcanti
Enviado por Marcos Cavalcanti em 17/12/2011
Código do texto: T3394175
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