Homenagem a vítimas da Boate Kiss em Santa Maria

Hoje acordei com o sol atravessando minha janela, percorreu – me um misto de alegria com uma tristeza opulente. Era aquele mesmo iluminar de todos os dias, mas, diferentemente das outras vezes, aquele brilho me deixava cega, não literalmente, eu apenas sentia a ardência por causa do choro da noite anterior. No fundo eu sabia que aquilo era apenas o começo. Não sei de onde vieram minhas forças para conseguir levantar daquela cama, meu corpo estava pesado como se eu estivesse carregando uma grande cruz. Doía tanto que eu parecia sentir chicotadas me agredindo internamente. “Ontem eu morri em Santa Maria!”

Sempre passamos a semana inteira aguardando a tão chegada sexta – feira, dia para podermos tirar algumas horas de folga antes de reunir a galera para dar aquele role de carro, tomar aquela gelada com vigor, viajar com quem gostamos, abraçar todos os amigos e contar as novidades, admirar o físico de um desconhecido, rever grande parte da família, relembrar dos “velhos”, não tão velhos tempos. E sábado então, o melhor dia da semana para gastar o seu cartão de crédito em diversão, escolher a melhor balada da cidade, dançar as melhores músicas, beijar alguém que jamais verá de novo, degustar as mais fortes bebidas e por vezes acabar cambaleando e ser carregado pelos amigos até a porta de saída. Domingo é dia da ressaca, serve para descansar e se preparar psicologicamente para começar toda aquela corriqueira rotina desgastante.

Adolescentes e novos adultos seguem aquela tão conhecida frase: “Aproveite seu dia como se fosse o último, porque um dia, ele será!” Não estamos esperando pela morte, não temos medo dela. Morrer é coisa de gente velha, porque tão novos deveríamos partir? Nunca sabemos quando a hora irá chegar. Domingo de madrugada eu curtia uma música sertaneja, não fazia meu estilo, mas as companhias eram boas, fechei os olhos e aproveitei o clima. Ao meu redor, diversas pessoas conversavam, casais de mãos dadas, riam. Homens falavam do perfil de uma mulher sem nunca a terem visto, a maioria delas estava com um copo na mão, uns dançavam animadamente, enquanto outros bêbados, estavam a fazer fiasco. Olhei alguns exaustos sentados as cadeiras, outros indo e vindo dos banheiros. Muitos eram conhecidos de lugares que eu frequentei, outros eram amigos que há muito tempo eu não via, no ambiente dedicado à fumantes, eu via vários cigarros entre os dedos, várias fumaças brancas saindo da boca de inocentes, eu detestava aquele cheiro. Mas, deixei rolar.

A noite estava para ser a pior da minha vida. Num segundo vi a agitação normal de sempre, e noutro vi todos correndo desesperados para alcançar a porta, eu ia perguntar aos meus amigos o que estava acontecendo, mas a resposta veio logo em seguida quando vi o fogo se espalhando pelo local, a fumaça era tóxica e parecia arrancar o ar de meus pulmões. O que antes era uma música agitada, agora estava em gritos horrorizados intermináveis. “Por favor, abram a porta, deixem – nos sair”. Vi mulheres e rapazes cair no chão, não ligavam em passar por cima, todos estavam se empurrando para disputar quem chegava primeiro. Não nos deixavam sair, e o pior de tudo é que o fogo preenchia cada vez mais a boate, o pior de tudo é ver as pessoas queimando, enquanto outras ainda lutavam pela vida, e eu só conseguia pensar em mim e nos meus amigos, queria os encontrar lá fora, os abraçar, chorar junto e dizer “Eu te amo, obrigada por existir.” Eu consegui sair, tive sorte, mas a cena lá fora cortou cada centímetro de mim, vários conhecidos no chão, policiais observando a cena, bombeiros e sobreviventes tentando apagar o fogo, familiares chorando, outras debruçadas em cima de corpos que jamais irão abrir os olhos novamente.

Quantas almas foram levadas ao céu naquela noite? Quantos corações sofrendo ao enterrar filhos e amigos no dia seguinte? Quantos agradecendo a Deus por não ter morrido naquela madrugada? Quanta lágrima, quanta dor, quanta partida.

Hoje eu não sei se fui sobrevivente ou se tive apenas sorte, apenas rezo e peço a Deus para amparar cada coração dolorido e para que possam achar uma maneira menos dolorosa de seguir em frente. Tudo vai ser diferente, a cidade está chorando, o mundo está dolorido, todos estão de luto, um luto eterno por 240 almas que injustamente deixaram de viver. “Hoje eu morri em Santa Maria, mas quem não morreu?”

Aviso: Eu não estava na Boate Kiss no dia da tragédia, apenas escrevi o texto como uma forma de homenagem a todos os que partiram.

Priscila Czysz
Enviado por Priscila Czysz em 03/03/2013
Reeditado em 11/03/2013
Código do texto: T4169578
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