Lembranças de uma filha

“A casa da saudade chama-se memória: é uma cabana pequenina a um canto do coração“

(Henrique Maximiliano Coelho Neto)

A saudade, que se tornou companheira constante, em alguns momentos parece saltar do canto e inundar todo o coração...

A mais tenra lembrança me vem à memória, como flashes de luz, mas a mais forte se trata das noites que dormi ao seu lado, me sentindo protegida, afagada... Da perna que eu teimava em jogar sobre o seu corpo, das tentativas de me fazer dormir no escuro.

Lembro-me do uniforme verde que ela me vestiu para ir pela primeira vez à escola, do quanto me senti importante, com uma boina sobre os cabelos cacheados e uma lancheira atravessada no meu corpo miúdo, de seis anos de idade.

Das vezes em que eu demorava a voltar da escola e no caminho a encontrava, brava, querendo saber o motivo de minha demora. Hoje eu sei que era preocupação. E como mãe se preocupa quando o filho demora a voltar. Hoje eu sei.

Lembro-me da cadeira de balanço e do quanto eu adorava ficar no seu colo, me balançando, quase sem trocarmos palavras, apenas aproveitando aqueles momentos silenciosos...

Minha mãe não costumava ser doce, mas era uma mulher guerreira, batalhadora, firme, com muitas feridas na alma. Tantas vezes a escutei falar de sua infância sofrida sem a figura materna, presenciava sua tentativa de transformar os fatos dolorosos em piadas que nos fizesse rir, enquanto sua alma, provavelmente chorava...

Não nasci do seu ventre, e tantas vezes eu chorei, querendo que tivesse sido diferente, querendo que tivesse sido diferente, pois se eu pudesse escolher alguém para nascer do ventre, teria sido através dela! Me amou como uma verdadeira mãe e compreendi, ao longo do tempo, que era exatamente isso que ela era, minha verdadeira Mãe!

Ninguém me chamava mais de doida e sem juízo que ela, mas sempre repetia isso quando eu arrancava sorrisos dela, ou quando eu a apertava, abraçando-a e tentando levantá-la, claro, nunca conseguindo. Essa é a imagem que mais me faz sorrir, pois sua voz, bradando o “doida” vinha recheada de carinho.

Lembro-me de suas preocupações comigo... Hora de voltar, se estava namorando, com a gravidez, com o estar morando distante, com as cartas que eu lhe escrevia, com as minhas tristezas, quando eu estava doente, quando eu viajava... Enfim, do seu olhar de preocupação quando percebia que alguma coisa não estava bem. Ah, ela lia o mais profundo do meu ser!!

Lembro-me das noites que voltávamos a dormir no mesmo quarto e ficávamos horas conversando, lembrando, fofocando, rindo e chorando, ao final da noite vinha o “bença mainha”, e a resposta me fazia dormir tranquila “Deus te abençoe e te dê juízo”. A primeira parte Ele sempre atendeu, mas a segunda, acho que se perdeu pelo caminho, ou mãe sempre vai achar que o filho precisaria de mais juízo...

Lembro-me de quando o coração começou a apertar, com a possibilidade de perdê-la. Do quanto era dolorido não poder ficar mais tempo ao seu lado. Do quanto me doía cada vez que a visitava num hospital, vendo-a debilitada, mas sempre dizendo que estava melhor...

A dor de ir perdendo quem você amou uma vida inteira é como ir perdendo uma parte vital do seu corpo...

Uma cadeira de rodas passou a fazer parte das lembranças, os cabelos brancos, a pele enrugada, os olhos pequenos, distantes e tristes...

Já não esperávamos tanto, apenas agradecíamos por cada dia que ela permanecia conosco. Cada novo encontro era uma festa, ela continuava nos abençoando...

Então, uma partida repentina e inesperada aconteceu, o companheiro partiu, antes dela. A força que a mantinha lutando pela vida parece que esvaiu... Eu a olhava e perguntava se estava desistindo de lutar, ela apenas afirmava, com um balançar de cabeça. Seus olhos estavam muito mais tristes, quase implorando pela aceitação de sua vontade. Meu Deus era tão difícil aceitar que a guerreira estava depondo sua armadura, desistindo da luta...

Foram três dias para meu pai ser internado e ser velado. Mais três dias para a guerreira entrar em coma.

Minha última lembrança, com ela ainda lúcida, foi em minha despedida, dizendo-lhe que voltaria na semana seguinte, que a amava e pedindo sua bênção. Em resposta, suas lágrimas dolorosas, para ela e para mim. Ao término daquele dia ela entraria em coma, para não mais voltar.

Mesmo assim, mais uma lembrança completa o roteiro de sua existência em minha memória. Ao visitá-la, prostrada em sua cama, segundo os médicos sem qualquer sinal de consciência, levei rosas do meu jardim, uma salmon e uma vermelha. Coloquei na água e deixei sobre sua cômoda, dizendo que ela não havia conhecido minha nova casa e nem meu jardim, mas que eu o estava levando para ela. E eu presenciei sua última lágrima...

No mais, são lembranças dolorosas por demais para que eu as deixe na memória afetiva...

Então, vinte e quatro dias depois da partida dele, estava ela partindo, nos deixando...

Enfim, a guerreira descansara.

Pouco me lembro do seu velório, acho que me sentia anestesiada. Em menos de um mês eu perdera o chão, o alicerce, os braços que me protegiam, a referência de amor. Foi o pior ano de minha vida...

Mas, como falo de lembrança, após superar aquela dor que dilacerava meu peito, me habituando com uma dor amena, com a certeza que jamais passará, lembro-me do quanto o meu sorrir e ser doida a deixava feliz.

E é assim que eu quero permanecer, para justificar cada lembrança que carrego comigo.

Eu te amo minha gorduchinha mais deliciosa do mundo!

Lágrimas virão, mas cada vez que faço minhas loucuras, lembro-me de sua voz carinhosa: “doida”!

Angela Leite
Enviado por Angela Leite em 11/05/2013
Código do texto: T4284621
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