Nos jardins secretos da alma

Eu lia e estudava para a prova de segunda-feira. O meu Colégio Nossa Senhora da Glória era, nos anos 70, referência de ensino, abrigando dezenas de gerações no nosso bairro paulistano do Cambuci. E com credulidade e inocência infantil e ainda sem condições intelectuais de questionamento eu lia nos livros de Educação Moral e Cívica, do antigo líder integralista Plínio Salgado, nos tempos da ditadura: Os negros são iguaizinhos aos brancos. A única diferença é que eles têm um pigmento na pele chamado melanina...

Com o tempo eu fui percebendo que o racismo, o pouco caso, a desconfiança eram sentimentos perversos e cotidianos. O problema não era, portanto, a melanina.

Os problemas estavam derivados dos restos grosseiros de colonialismo, de neocolonialismo, de capitalismo ascendente, da mesquinhez do coração humano, em suma. Não, a melanina era uma das tantas desculpas mirabolantes inventadas para se dar um tom de normalidade a todas as formas de exploração.

E eu fui ensaiando compreender a condição humana e a acreditar que a igualdade de condições, de sentimentos e de direitos era possível. A minha grande amiga de adolescência era negra e isso me fazia bem. A Ana foi uma grande pessoa na minha vida. Inteligente, de riso farto, era uma pessoa inteira.

E eu ia entendendo que as pessoas poderiam ser felizes, se encantar umas com as outras. Poderiam ser benevolentes, amáveis, viver sem rancor, exercitando o perdão, a boa conversa, as trocas de conhecimento. Seria menos difícil a vida. Bastava saber se olhar, se respeitar, partilhar.

Não foi fácil a aprendizagem na nossa sociedade, ainda com ranços tão fortes dos tempos da escravidão, do longo período de exclusão tão providencial para as elites donas do poder.

Sem perceber com a clareza necessária a importância da aprendizagem em lidar com as pessoas portadoras de “mais melanina na epiderme”, fui me apaixonando por Nelson Mandela.

E, muitas vezes, quando tive dificuldade em perdoar, me lembrei dele.

Mandela até nasceu num momento especial, tempo de algumas promessas e parcas esperanças. Nasceu no final da Primeira Guerra , exatamente no tempo em que o comum era não se acreditar em nada, ou quase nada. O horror havia dizimado milhões, arrancado o coração de outros tantos milhões... mas a vida seguia, tinha que seguir,mesmo aos solavancos, na sua perplexidade e vergonha.

O século XX produziu os piores horrores, mas também trouxe Gandhi, Madre Tereza, Chico Xavier, dona Zilda Arns e tantos outros notáveis. No final do segundo milênio nos presenteou com Malala, a garota paquistanesa baleada pelos Talibãs porque defendia o direito da mulher à educação nos países árabes. E aquele século trouxe também Mandela, que começou tímido, ensaiando uma longa e árdua caminhada, mas dali, da África do Sul, soube conquistar o mundo.

Eu não conseguia compreender como poderia um homem, defensor da vida, da igualdade e da justiça, passar 27 anos preso e sair defendendo o diálogo e a construção de uma nova história. Ainda mais: sorrindo e acenando para as multidões, como se pedisse calma, um “estou aqui e vamos deixar o passado no seu devido lugar. Vamos apenas construir em outras bases”.

Difícil agora imaginar um mundo sem Mandela. Sem o seu sorriso confiante, amoroso, grávido de esperança.

Muitas vezes sei que se amargurou pelos descaminhos da sociedade sul-africana do após-Apartheid. Pregou e esperou mais justiça, menos miséria, mais trabalho, com razão e esse “mais” foi um filho que teimou em não aparecer.

Mandela, me permita uma opinião simplista, mas acho que Deus tem umas particularidades inacessíveis à nossa precária inteligência. Eu acho que Deus pensou em dar um presente para Jesus em mais um aniversário que se aproxima. Claro, o Bom Pai sempre quer reconhecer e , alegremente, extravasar bondade e amor especial ao Filho dileto.

Imagina, Mandela, você, agora, participando desse banquete, dizendo o que fez, como foi a sua forma de luta, os tempos na prisão, a liberdade conquistada, os sonhos se definindo, o trabalho na busca de uma sociedade melhor e mais organizada! Com certeza, um dia sentiu a fé abalada, as dúvidas lhe vieram à mente, mas nunca deixou de prosseguir.

Conte, no dia do aniversário de Jesus, o que fez, como agiu, o que disse ao seu povo. Não se esqueça de dizer o quanto chorou na sua solidão no cárcere, mas diga também o quanto sorriu e pediu paz. E fez a paz.

Conte como sobreviveu ao século XX, o mais violento da História. Conte o que fez para que esse tempo fosse um espaço de possibilidades de encontro. O doce encontro, a maior de todas as artes!

Conte, Mandela. O aniversariante vai ficar feliz com o presente. Quem sabe, o melhor de muitos anos.

Ele vai sorrir prá você, com a sua exuberância de afeto, estender a mão e, quem sabe, dizer prá você descansar um pouco... porque depois há de retornar e continuar ensinando sobre o poder de amor e do perdão a essa humanidade que teima em evoluir tão pouco.

Parabéns ao Aniversariante que vai receber a joia mais cara, mais burilada e completa e de luminosidade ímpar.

Vá com Deus, Nelson Mandela. Siga na paz, sua velha conhecida. Mergulhe por completo na felicidade, no Amor integral e absoluto que vem dos céus.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 06/12/2013
Reeditado em 08/12/2013
Código do texto: T4601644
Classificação de conteúdo: seguro