Cem Anos de Ana

Em 07 de abril de 1914 nascia Ana Amélia Freire. Isso é o que diz a certidão de nascimento.

Naquele tempo não era difícil as pessoas registrarem seus filhos um bom tempo depois de nascidos. Isso sem falar naqueles que nem eram registrados!

Mas supondo que a data estava correta, Ana quase chegou lá. Teria chegado facilmente se não tivesse sofrido a perda de um dos seus filhos mais velhos.

E olha que ele nem estava gravemente doente. Apenas tinha seguido a orientação do médico para fazer uma cirurgia no labirinto. Ele foi e em três dias estaria de volta, pensou o coraçãozinho de mãe.

Mas a volta foi em um caixão.

Na época, Ana estava com 98 anos e 4 meses.

Imagine o que significa para uma mãe, ainda mais nessa idade, ver um de seus filhos em um caixão... Essa não é a ordem natural das coisas. Os filhos é que devem enterrar os pais e não o oposto.

Mas desta vez Ana, que já havia sofrido tanto nessa vida, passou por este, que foi o pior momento de todos.

A tristeza foi tanta que Ana não conseguia mais enxergar motivos para viver. Chegava a passar o dia todo olhando para a foto de seu filho, sem acreditar que Deus o havia levado assim tão de repente.

E foi em um desses dias tristes em que Ana, fraca e desnorteada, sofreu uma queda que a deixou em coma por alguns dias.

A família inteira pensou que sua hora já havia chegado, mas ela foi forte e lutou para dar mais uma chance à sua própria vida.

Mas ela não era mais a mesma Ana saudável, ligeira e independente que sempre havia sido. Seu corpinho sempre foi franzino, mas sua agilidade e sua lucidez eram notáveis. No fundo ela era sim uma fortaleza de mulher.

Criou seus 12 filhos com muito carinho e muita disciplina. Ficou viúva cedo, aos 45 anos, mas nunca quis saber de outro homem em seu coração. Seu foco era cuidar dos filhos, netos, bisnetos, tataranetos e ver todo mundo feliz, bem nutrido e bem educado.

Sempre com seu jeitinho meigo e doce, se orgulhava de cada criança que nascia na família. Fazia questão de visitar todos (ou ser visitada por eles), bem como guardar fotos e lembrancinhas.

Cartinhas e bilhetinhos ela também guardava. Recebia tudo com muito carinho dos seus netos e bisnetos. Ela gostava de ficar vendo e revendo esses mimos, para deixar sempre viva em sua mente a doce certeza de ter sido uma pessoa muito amada.

Era esperta, sábia e gostava de cozinhar e contar suas histórias de vida para todos. Algumas histórias ela até repetia, mas era sempre gostoso ouvi-la falar sobre a vez em que quase se afogou no rio e sua irmã mais velha ficou com medo, só olhando; ou quando colocou a comida para o cachorro e foi atender à porta, mas antes esqueceu de falar para o cachorro “pode comer” e o coitado ficou ali um bom tempo olhando para a comida, morrendo de fome, mas firme na obediência!

Teve a vez em que ela estava voltando da feira e, ao descer a ladeira com o carrinho, levou um belo escorregão. E ao invés de soltar o carrinho, ela foi deslizando junto com ele e ralando todo o corpo no asfalto!

Ela também falava da vez em que teve que tirar foto 3x4 para um documento e, como não havia dado tempo de comer nada naquele dia, acabou saindo com "cara de fome" na foto. Ela contava isso mostrando a tal foto, que por sinal ela detestava!

Era cada coisa engraçada que acontecia com ela! Ana fazia questão de narrar tudo com aquele jeitinho todo especial e uma riqueza de detalhes que faziam as pessoas visualizarem direitinho o ocorrido.

Ana era uma mulher e tanto. Viveu muito e viveu feliz. Para ela bastava estar em uma casinha para todo mundo ir lá visitá-la. Nada de riqueza, nada de luxo, nada de frescura. Sempre tinha um feijãozinho maravilhoso à espera de quem chegasse para comer.

Mas quando ela já não tinha mais como temperar seu feijãozinho, a vida foi deixando de fazer sentido para ela. Perdeu um filho que era um companheiro e tanto. Ele nunca se casou e passou a vida toda cuidando dela. Não era de abraçar, beijar e demonstrar afeto, mas ele a amava muito, pois fazia tudo pelo bem dela.

Após a queda que a deixou sem poder andar, Ana se viu obrigada a receber os cuidados das filhas, que lhe davam banho, remédios e comidinha na boca. Isso foi o fim para ela. Uma mulher que sempre se virou sozinha, nunca precisou de ajuda para ir ao banheiro, de repente se torna um bebê que precisa de fralda e cuidados especiais.

Sua lucidez não aguentou passar por essa humilhação. Aliando isso a uma imensa tristeza por ter perdido seu filho, Ana foi perdendo a vontade de viver, pedindo até mesmo em suas orações para que Deus a levasse e assim ela não mais atrapalharia a vida de ninguém.

Chegou aos 99 se sentindo um estorvo. E tudo aconteceu em 1 ano. A perda do filho, a queda, a impossibilidade de se locomover sozinha...

Na cabecinha dela ela já havia chegado aos 100. Mas ainda faltavam 9 meses. Tempo de uma gestação.

Hoje estamos há 9 meses e 4 dias sem Ana.

Hoje seria um dia de festa. Festança. Mas estamos sem Ana.

Cem anos de Ana e estamos sem Ana.

Não há motivos para festejar. Apenas temos que relembrar tudo de bom que ela viveu nesses quase, talvez já 100 anos de lutas, alegrias e ensinamentos.

Dificilmente chegaremos até onde ela chegou, mas a genética é boa. Gente forte, resistente.

E já temos um forte candidato ao centenário na família, o primogênito de Ana, que já está beirando os 80!

Quem sabe, né? Ana ficaria orgulhosa disso. Na verdade, de onde ela estiver, nós sabemos que ela se orgulha da família linda e enorme que ela construiu com muito amor.

E nós só temos a agradecer à ela por tudo.

Muito obrigada, Vó! E feliz 100 anos que a senhora quase completou aqui com a gente!

Elaine Thrash - 07/04/2014.

Elaine Thrash
Enviado por Elaine Thrash em 07/04/2014
Reeditado em 07/04/2014
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