Naquela casa

A casa de madeira. Sempre aquela família morou em casa de madeira.

A minha tia Tereza não gostava muito disso não. Sonhava com uma casa “de material”, e muitas vezes disse isso.

Inoportuno ficar contando o quanto ela e o meu tio trabalharam para sustentar os três filhos. Era o natural para uma família de valores éticos definidos e muito claros. Com muito sufoco – e sem reclamar – a tia Tereza se formou no magistério. Lecionou, cuidou da comida, da roupa e da educação das três crianças na casa da rua de terra vermelha do Paraná. Anos depois foi cursar Pedagogia na cidade vizinha. E os filhos a brincarem como as crianças mais saudáveis e felizes do planeta. Roubando laranja na casa do vizinho, correndo atrás dos porcos no quintal, com os pés vermelhos e os dedos até abertos pelo providencial esquecimento dos sapatos.

O meu tio, na farmácia, atendia muito bem à clientela e dava assistência ao asilo naquela cidade pobre e de pouca luz nas ruas. Os vagalumes, cumprindo bem a sua função biológica, ajudavam a iluminar os caminhos dos passantes. Os grilos davam o ar da sua graça na escuridão com poesia e suavidade. O bar do seu Chico, defronte à farmácia, produzia no piso de madeira gasta um “reeeccc” a qualquer pisar de criança. Era ali que o meu tio comprava uma porção de balas 7 Belo e levava para os sobrinhos de São Paulo a cada visita tão esperada.

A lata de bolachas de cerveja em cima do armário. O almoço delicioso e farto com frango ensopado e macarrão com molho de tomate e salsinha . O café quente com aquele odor característico descendo pelo coador de pano. O doce de abóbora de colher. Outras vezes, o bolinho de chuva doce e o salgado. A lata de goiabada Etti a ser generosamente dividida em pedaços grossos.

O fusca velho com uma toalha pendurada no “puta merda” . As colchas de crochê. A sapateira no banheiro. Com o passar dos anos, as fotos dos netos nas paredes da sala.

As dezenas de pacotes de presentes de Natal em cima do guarda-roupa. Papeis coloridos guardavam os seus segredos e futuros agradecimentos com sorrisos estampados.

Jogos de canastra depois do churrasco com maionese e farofa. Muitos refrigerantes bem gelados, além da cerveja. De sobremesa, gelatina colorida e outros doces. As gargalhadas. O humor refinado e imensamente criativo da tia Tereza. Eu jamais vira uma casa tão coberta de felicidade. Parece que os anjos da guarda de cada um deles fizeram dessa casa o seu espaço preferido. Ficavam, certamente, também a rir , com um olhar satisfeito e feliz a cada “tirada” da minha tia. E o meu tio, na sua cadeira do papai, tendo o ventilador ligado como companheiro inseparável, assistindo com interesse filmes antigos, ingênuos e com o humor de Mazzaropi e Zé Trindade.

A casa com mais harmonia e sinceridade que conheci e aprendi a amar profundamente. Um sonho de felicidade e de encantamento. Casa viva, com cores de almas perfumadas. O que era para ser dito era dito e pronto. Jamais para machucar, mas para se abrir janelas para as coisas reais do mundo, sem floreio falso e desnecessário. Uma casa que sempre acolheu bem todas as visitas e sempre com a mesa farta. E com abraços. Nunca faltou a piada, o humor espontâneo e , com tal magnitude, nunca deixou de ser lembrado e repetido.

Um dia, preocupada, a minha tia Tereza disse que o filho mais novo estava ruim “da cabeça”. Como ela era muito exagerada, minimizou-se a informação. Seria inacreditável e absolutamente inadmissível uma tempestade com tamanha trovoada sobre aquela casa. Foram procurar todos os recursos, correntes de orações, mas o Pedro estava desenvolvendo uma doença degenerativa.

O tempo começou a rastejar e a se banhar de lágrimas grossas de sal. A alegria foi se dissipando como se os anjos tivessem repentinamente saído de férias daquela casa. A minha tia não suportou a dor de saber a forma que o filho partiria. Desenvolveu um câncer de pulmão provocado pela tristeza. Partiu antes do Pedro.

E hoje, esse filho caçula da tia Tereza e do tio Béio também resolveu atravessar o rio dessa existência. E a conclusão silenciosa de que aquele tempo, aquela união, a casa com alegria ímpar e felicidade inigualável estavam mudando definitivamente de lugar.

Que difícil aceitação! Que dor estranha a arrebentar o peito ao perceber que aquele tempo acabou! É definitivo. Acabou.

Mas a vida é eterna. É apenas um breve tempo de separação. Tempo de recomeço de todas as partes. Momento oportuno de agradecer a Deus pela experiência que tivemos nesse contato duradouro, aconchegante e tão feliz. Alegria por perceber que é possível a construção da felicidade com pouco apenas na aparência.

Não podemos chorar porque tivemos a felicidade única da riqueza dessa convivência. Mas a dor desse fim é brutal, lancinante. Aquela casa, sem perfume, sem movimento, sem emoção, calada e sem sorrisos... é insuportável vê-la assim, mesmo na sua elegância, rodeada por limoeiros, mangueiras, figueira e pés de acerola.

Aquela casa, com a sua energia ímpar, as almofadas de crochê, o café fumegante , o churrasco sendo assado logo cedo, os abraços sem economia, o riso macio e profundo, as fotos capazes de carregar movimentos vibrantes não acabaram. Apenas uma parte dela se transferiu para o céu. O céu, sim, lugar especial das pessoas sinceras e que amam e deixam extravasar o brilho do olhar e no quente do coração. Quem sabe, uma parada nas nuvens e eles, juntos dos anjos, olhando prá baixo, dizendo:

- Peraí, gente! Não precisa chorar. Nós viemos aqui, antes de vocês, para preparar a mesa e vamos aproveitar e chamar os anjos que já estão por aqui mesmo. Viemos ficar um pouco com eles. Quando vocês chegarem, vamos nos abraçar de novo, sentar e conversar sobre as coisas que deixamos... mas agora a gente tem que ir, ultrapassar as nuvens, porque lá em cima é bem melhor... e os anjos estão sorrindo, nos chamando e dizendo que

TÊM ORGULHO DE COMO SOUBEMOS VIVER, AMAR E SORRIR.

Boa viagem, Pedro. Seja muito feliz. Mande abraços para os que já foram. Arrume uma mesinha aí no cantinho do céu, embaralhe e dê as cartas para o próximo jogo. E não se esqueça: frite os ovos para cada um comer com pão, como daquela vez, lembra?

Até breve, meu querido primo.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 27/05/2015
Reeditado em 28/05/2015
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