A bênção, D. Paulo.

Então o Sr. precisou partir, não é dom Paulo?

Precisamos entender e aceitar, mas como dói!

Desde a minha adolescência, acompanhei , humildemente, o seu trabalho. Uma brilhantíssima tarefa de ser humano integral, completamente franciscano num país cruel.

Eu acompanhava os seus passos com uma admiração crescente a cada dia, pois, além do seu imenso esforço em pregar o Evangelho, o Sr. sabia ouvir, respeitar, não julgar, compreender e, sobretudo, acolher.

Como o Sr. teve tanta coragem para enfrentar os mentecaptos do poder daqueles tempos tão sombrios? Bater às portas dos quartéis, da presidência da república e de tudo quanto fosse necessário para pedir respeito, justiça e julgamento sério para com as vozes discordantes da ditadura. E sempre ameaçado de morte pelos covardes à disposição do poder, imundo poder.

O Sr. teve a honra e sensatez de partilhar a palavra de Deus, apresentando o Criador jamais sendo uma voz sisuda, de censura, de castigo e de condenação, mas a voz do amor e da tolerância que eu e milhões de pessoas tinham tanta necessidade de ouvir e de crer. A voz suave da acolhida, do não julgamento capaz de tolher a nossa identidade, sonhos e vontades.

E fez questão de fazer valer o ideal de justiça, da visibilidade aos humildes, valorizando a compaixão, a importância do diálogo, do sorriso e da fé. Sempre dividindo o doce sabor da esperança em cada alma, mesmo na turbulência dos tempos de luzes apagadas.

O Sr. me fez acreditar em Deus quando eu, na minha arrogância e prepotência de juventude, achava que poderia tudo sozinha, pelo meu esforço apenas. Lá da catedral da Sé o Sr. me mostrou qual o caminho – sempre ao lado do povo, dos que sofrem, dos que querem uma reconsideração histórica e o seu tempo para viver.

Foi o Sr. quem rezou a missa para Wladimir Herzog, para Santo Dias e para tantos que foram assassinados por pensarem e agirem diferentemente do establishment.

E teve a coragem de propor a redação e publicação do “Brasil nunca mais” e se envolver com prisioneiros de ditaduras de países vizinhos.

Impossível redigir sobre a sua grandeza, importância e significado. Minha insignificância não me permite tamanha ousadia.

E quando eu passava pela Praça da Sé eu sentia a segurança da sua presença ao olhar para a catedral. Eu me sentia protegida, abençoada e a própria igreja se transformava num espaço mais sereno, vivo e capaz de ouvir os corações, uns conturbados, outros apaixonados, outros distantes da vida. Outros simplesmente sonhavam. Alguns se encantavam.

Hoje, quando soube do seu desencarne, eu estava de saída para exercer o meu voluntariado na Pastoral da Saúde em Florianópolis. Tive uma imensa vontade de chorar. Mas não chorei. Humildemente tento exercer uma minúscula parte do meu compromisso como cidadã numa Pastoral, uma das suas riquíssimas heranças.

Quero sentir a sua presença e o seu senso de justiça e de eterna luta por um país melhor.

Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem, mas se encantam. Imagino o Sr. encantado com as belezas do universo, correndo livremente por entre as nuvens, fazendo as suas paradas nas estrelas para contemplar a magnífica criação!

Realmente, D. Paulo, o Sr. não merecia ver o que estão fazendo deste país. Possivelmente não chegou ao seu conhecimento que ontem foi aprovada a PEC da morte. Vamos andar para trás numa velocidade assustadora, obviamente por muito mais de duas décadas. Os pobres serão lançados ao lixo, bem como seus sonhos e desejos. Muitos morrerão por falta de atendimento médico. Muitos não chegarão sequer aos bancos escolares. O país está se transformando num nada, no dejeto do mundo, na “cloaca máxima”, como era chamada a rede de esgotos do antigo Império Romano.

O sr. não merecia ver isso. Seria covardia demais querer que o Sr. vivesse nessa cloaca máxima.

E imagino a sua chegada a paraíso – São Francisco lhe recebendo de braços abertos, sorrindo e afetuoso, dizendo:

-“ Que bom, filho! Você compreendeu as minhas palavras e saiu da retórica. Você foi um homem de verdade. Parabéns, filho querido.”

E os demais anjos, arcanjos, santos, querubins e serafins se enfileiraram para lhe receber com uma calorosa salva de palmas.

A bênção, D. Paulo. Reze por nós. Não nos esqueça. Tenha piedade da nossa ignorância especialmente nesses tempos sórdidos.

Mas a saudade já dói.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/12/2016
Reeditado em 14/12/2016
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