Os antigos do meu bairro

Ele já não estava mais lá, sentado e lendo o jornal, nem ela descansando em sua rede. Ninguém mais sentiu o aroma que exalava de seus frangos assados aos sábados e domingos, ou dos pastéis fritos na hora nos dias de semana. A caminhada diária com vidros nas costas já tinha cessado. Histórias facetas não foram mais inventadas, contadas ou aumentadas. Primeiro foi a Dona Maria Raimunda, minha bisavó, com sua bengala improvisada, depois o ‘Seu Amazonas’, senhor de poucas palavras. O tempo, o tempo implacável, anos depois passou para o seu Aristolino, o ‘Bilico’, vidraceiro; e para a dona Néia, companheira do seu Amazonas. Meses depois era a vez do ‘Seu João’, meu pai e avô. Cinco personagens, cinco diferentes trajetórias, algo em comum: Eram os antigos do bairro, do bairro São Lázaro, na zona Sul de Manaus, aqueles que o viram surgir em meio ao improviso gestado pela necessidade de moradia entre as décadas de 1950 e 1960.

As construções também apresentam as marcas do tempo. A casa da D. Maria Raimunda, já com cinco décadas de existência, está com alguns azulejos rachados e, dessas fendas imperfeitas, crescem plantas diversas; com as grades desgastadas, perdendo a cor azul, mas continua com os jardins sempre floridos, com diferentes animais, borboletas, joaninhas, pássaros de diferentes espécies e, vez ou outra, uma iguana. Do lado esquerdo, desde a década de 1970, continua de pé o antigo muro de concreto que demarcava o limite da rua Nova, no bairro de São Lázaro. No pátio ainda brincam crianças, suas bisnetas, as quais a maioria não conheceu. Na sala, renovada, uma máquina de costura singer de 1960, hoje um objeto de decoração. Lembro de suas palavras “mágicas” para afastar os temporais: “levanta, levanta, levanta. Espalha, espalha”; ou da vez que colocou, na testa da única bisneta que conheceu, um pedaço de pano vermelho umedecido para que esta parasse de soluçar.

A alguns passos da casa de D. Maria Raimunda moravam D. Néia e o Seu Amazonas. Tenho gravado em minhas memórias o bom humor de Dona Néia, marcado por sua risada contagiante. Era muito amiga de minha bisavó, visitando-a inúmeras vezes para colocar os assuntos em dia. Quando conheci o Seu Amazonas ele já estava debilitado pelo Mal de Parkinson. Quase não falava, mas esboçava reações como risos quando ouvia ou via algo engraçado. Foi colega de trabalho do marido de dona Raimunda, Zacarias Rodrigues Vieira, na COMARA (Comissão de Aeroportos da Região Amazônica).

Ainda é estranho passar na Travessa Maria Andrade (antiga São Vicente) e não dar bom dia ou boa tarde para o seu Aristolino Pereira, Bilico para os mais conhecidos, amigo de longa data do meu avô, sempre sentado ao lado de sua esposa em uma cadeira de embalo. Foi um dos primeiros moradores do bairro, um dos guardiões da Paróquia de São Lázaro, a qual sempre esteve de prontidão para ajudar quando necessário, seja para fazer seus vitrais, para atuar como catequista, coordenador do movimento do terço dos homens e ser agente da Pastoral do Batismo. Ele se interessou por meu projeto de escrever a História do bairro, marcamos um dia para eu entrevistá-lo, mas esse dia nunca chegava por causa de imprevistos acadêmicos. Quando tive a chance, já tinha chegado a hora desse entusiasta da História do Barro Vermelho partir, sem deixar que eu o visse uma última vez.

João Augusto de Carvalho, meu pai e avô. Foi comerciante, capitão e funcionário da Alfândega de Manaus. Terminou seus dias sem aceitar a aposentadoria, sempre fazendo algo para se manter na ativa. Vendeu por alguns anos pastéis e frangos assados na frente de casa, da antiga casa da sogra Maria Raimunda, na rua Nova. Partiu em um 14 de dezembro de 2016, deixando aquele final de ano marcado na família. Conversas não foram muitas, mas as que existiram estão bem guardadas, sobre as raízes familiares em Óbidos, no Pará, sobre os bisavós Alberto de Carvalho e Zeneide Buenano que não conheci, sobre os primeiros empregos e o dia em que chegou em Manaus. Materialmente restam algumas fotos, uma rara de 1943 quando tinha apenas um ano, com seus pais; ferramentas como um esquadro alemão do final da década de 1960, uma balança manual inglesa da marca Hughes, da mesma época, uma plaina de madeira; e uma pintura do dia do casamento, em 1970. Ficaram marcados os momentos em que chegava em casa trazendo pirarucus, tambaquis, tracajás, pacas, porcos do mato e outros animais de sabor inigualável.

Ambos viram o bairro nascer e crescer. Andaram por caminhos tortuosos, de barro, mas puderam ver o asfalto e a energia chegar; viram e utilizaram as carroças utilizadas no transporte de madeira e palha, assim como os ônibus que mais tarde surgiram. Eles partiram sem avisar. Atravessaram o Rio Negro deixando fragmentos de épocas diversas em quem os pode escutar. Fui um dos atingidos por esses estilhaços temporais, brevemente registrados nesse texto.