A minha impressão é de que ele amava tanto a infância que foi criança a vida toda! Se foi  aos 97 anos e deixou entre nós páginas e páginas de beleza e respeito pela vida de todos os seres. Aqui uma dica de leitura de uma de suas obras que muito me encanta.


 
Memórias Encantadas
 
 
     TUDO QUE NÃO INVENTO É FALSO, diz o poeta mal abrimos o livro e como também tenho cá as minhas memórias inventadas me tomo de amores por suas palavras, por seu jeito arrevesado de escrever, seu pensar tão criativo, seu dizer poético tão próprio, tão especial, suas iluminuras em prosa poética da melhor qualidade, pois eu só conhecia as poesias do autor.
     Ler Manoel de Barros é uma experiência única.Desde que li pela primeira vez um poema seu, me encantei de imediato mas MEMÓRIAS INVENTADAS, sua primeira experiência fora dos versos, é mais que um livro, são três. A Infância, A Segunda Infância, A Terceira Infância é uma experiência sensorial pois as páginas estão soltas, levemente amarradas por um laço, dentro de uma caixa de papel. Uma lindeza!
     São pequenos textos, ilustrados pela pintora e filha, Martha Barros, todos de um lirismo e um encantamento único. Meu coração de leitora apaixonada pela beleza de seus textos, se derreteu com a delicadeza com que o poeta nos conta de sua infância, de suas descobertas, de seus assombros e deslumbramentos com a vida, com a poesia, que descobriu ainda adolescente. Minha alma se deslumbrou e se encontrou menina ainda, vivendo cada emoção, cada história desenhada nas linhas e entrelinhas desses textos.
     Mas nem tudo é infância nas caixinhas encantadas.É mais que isso, é a pura poesia da vida em qualquer idade, pois “Manoel de Barros busca a essência existente por detrás de cada palavra. Para ele, mais do que o significado literal, as palavras têm o poder de simplesmente encantar, sem a necessidade de possuir uma função definida. O indizível, aqui, é mais valorizado que uma frase que informa sem emocionar. As palavras, nas memórias inventadas, voam livres sem obedecer a regras que, por fim, podem assassinar seu encanto.” *
     “Embora seja “prosa”, esse livro de Manoel de Barros traz momentos de pura poesia como a tentativa de desenhar uma manhã e cometer um desenho erótico, com a manhã de pernas abertas para o sol; ou nos trechos (a seguir, entre aspas, transcritos diretamente da obra): “eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo, mas sobre as pequenas eu sei menos”; “os verbos servem para emendar os nomes [...] bentevi cuspiu no chão. O verbo cuspiu emendava o bentevi com o chão”; “que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”.*
     Dizer mais o que? Só voltar a cada cantinho da nossa infância, só ler e reler, ler e se encantar, ler e amar mais ainda as palavras que tanto ou nada dizem, mas amá-las sempre.
O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS
 
Por Manoel de Barros
 
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios

 
* Fontes: fragmentos de A Folha de Londrina | Faculdade Cásper Líbero
MAIS DO AUTOR:
Manoel Wenceslau Leite de Barros (Cuiabá MT, 1916). Publicou seu primeiro livro de poesia, Poemas Concebidos Sem Pecado, em 1937. Formou-se bacharel em Direito no Rio de Janeiro RJ, em 1941. Nas décadas seguintes publicou Face Imóvel (1942), Poesias (1946), Compêndio para Uso dos Pássaros (1961), Gramática Expositiva do Chão (1969), Matéria de Poesia (1974), O Guardador de Águas (1989), Retrato do Artista Quando Coisa (1998), O Fazedor de Amanhecer (2001), entre outros. A partir de 1960 passou trabalhar como fazendeiro e criador de gado em Campo Grande MS. Ao longo das décadas de 1980 e 1990 veio sua consagração como poeta. Em 1990 recebeu o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro O Guardador de Águas, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Manoel de Barros é um dos principais poetas contemporâneos do Brasil. Em sua obra, segundo a crítica Berta Waldman, "a eleição da pobreza, dos objetos que não têm valor de troca, dos homens desligados da produção (loucos, andarilhos, vagabundos, idiotas de estrada), formam um conjunto residual que é a sobra da sociedade capitalista; o que ela põe de lado, o poeta incorpora, trocando os sinais".

*Republicação. Manoel de Barros faleceu em 13 de novembro de 2014.