Breves palavras sobre "O Morcego" e Augusto dos Anjos

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"Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais". Quando me perguntei como começar a falar sobre a obra de Augusto dos Anjos (1884-1914), foi essa a frase que imediatamente me veio à cabeça: o aviso escrito no portão do Inferno, em "A Divina Comédia", de Dante. Pois quem se atreve a ler as palavras do célebre poeta paraibano faz uma viagem pelas profundezas mais escuras da alma humana.

Mas espere! Responderei com as mesmas palavras do guia de Dante, quando ele se deparou com aquela sinistra mensagem: "Não temas, tu ainda vives!"

À pedido da página "Arte Reflexo" para apresentar qualquer poema do universo literário, algumas releituras fizeram saltar aos meus olhos "O Morcego" (transcrito abaixo). Este acabou sendo o poema eleito, e que exemplifica a maestria tétrica deste escultor de versos. Um soneto que inteligentemente transforma a figura medonha do mamífero alado numa metáfora para algo que atormenta o poeta. E a todos nós, eu diria, ao longo da vida. O que parecia ser o embate com a invasão de um animal indesejado, torna-se então a reflexão sobre o que levamos dentro de nossas cabeças.

Mas não só seu conteúdo é impactante, como também sua forma: por toda a sua obra, Augusto dos Anjos derrama um riquíssimo vocabulário, com presença frequente de termos científicos, para escancarar o infortúnio da condição humana na Terra - vítimas da matéria, porém, portadores do pensamento. E na leitura vamos conhecendo a dosagem de um e de outro: uma mistura da biologia do corpo com o conflito existencial de quem é consciente da própria finitude.

Por que ler Augusto dos Anjos? Repito: tu ainda vives! E ainda respondo a pergunta com outra pergunta: por que deveríamos ter medo do escuro?

* * *

O Morcego - de Augusto dos Anjos

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:

Na bruta ardência orgânica da sede,

Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."

— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho

E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,

Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego

A tocá-lo. Minh'alma se concentra.

Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!

Gustavo Carnelós
Enviado por Gustavo Carnelós em 23/04/2021
Código do texto: T7239178
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