UM TRATADO SOBRE A VIDA E O DESTINO IRREVERSÍVEL

A Morte de Elivonete Xavier: um tratado sobre a vida e o destino irreversível de cada um de nós.

Elivonete Xavier, alguns anos mais nova que eu, foi uma bela jovem que, em sua adolescência, nos encantou a todos nós pelo porte solene, um pouco tímida, altiva e bem cuidada. Ostentava indumentárias feitas à capricho para o deleite dos jovens enamorados da época. No dia de hoje nos deparamos com a notícia do seu falecimento. Seguem-se as reações: publicamente, a protocolar comoção; no íntimo de cada um dos seus contemporâneos a impressão que ela nos causara no doce embalo de um tempo feliz que nunca mais voltará. Neste clima de velório algumas pessoas esmiúçam a vida pública dessa admirável criatura, extraindo a impressão geral do quadro, o foco de todos neste ser que se despede de nós.

O último dado é da maior relevância para a trama, e não é nunca por acaso que, além da magnânima vida, Elivonete era dotada de um talento especial para o balé. A ponto de descrevê-la, a certa altura, que “Tudo isso o absorvia tanto que qualquer outro emprego perdia o interesse…”, referindo-se à dança que a dominava por completo. É uma frase banal e fundamental, e não poderia jamais passar despercebida. A realidade da vida nos ensina que ficção não se faz apenas de frases brilhantes: um lugar comum estrategicamente colocado no texto pode esconder um segredo, ou até mesmo o sentido, de uma trama inteira. Porque a frase em questão dimensiona até que ponto determinado conteúdo absorve Elivonete. Trata-se, aparentemente, de uma frívola, que nas horas vagas emprega suas energias à tarefa de emprestar à sua vida “um ar pronunciadamente aristocrático, a vida de uma bailarina.” Analisando com mais cuidado, surge um insight maravilhoso sobre a frivolidade: “Na verdade, havia ali, no sonho de uma bailarina que poderia ter-se agigantado se não vivesse em uma cidade pequena e de pouco ou nenhum recurso para expandir-se mas que pretendia aparentar opulência em deslizar no palco do Theatro Municipal interpretando o Lago dos Cisnes, por exemplo, e apenas consegue que pareçam extraordinariamente umas com as outras: “thera-Band, chinerina, bosu, pirueteira, anel de pilates, peito de pé falso, botinhas de aquecimento, enfim, tudo aquilo que as famosas bailarinas possuem para parecer com as pessoas da mesma classe”. Imbuída de grande saber, portanto mais elaborada, esta não é uma frase mais significativa do que a primeira, absolutamente despretensiosa. Mas revela o conteúdo daquela “absorção” de sentido. Visa, como tal, nos certificar que a jovem Elivonete replica certo status e compraz-se em fazê-lo: em sua frivolidade é apenas uma “imitadora”, sem nenhum traço original. Sempre, em dias festivos do Colégio Nossa Senhora das Dores, a meiga Elivonete Xavier exibia a sua dança ao som das valsinhas em voga – “hi Lili, hi Lili, Hi Lo” – era uma delas. Não era dada às rodinhas sociais, preferia as tertúlias, sendo requisitada pelo nobre porte. Nunca lhe dirigi a palavra, sempre a admirei à distância. A sua linguagem era expressada através da arte e isto era o suficiente para os seus admiradores. Num dia desses, preocupada com a saúde, Elivonete sente-se mal, a partir de então a vida da heroína nunca mais será a mesma. Surge um sintoma, que evoluiu gradativamente, matando-a ao cabo de dias e alguns desses dias de intenso sofrimento. Poucos souberam dessa verdade, respeitando o silencio imposto pela protagonista. Foi um triunfo da ironia.

A Morte de Elivonete Xavier descrita no sentido poético, se isto é permitido nesta hora, descreve que a doença, sendo física acaba por expor a enfermidade moral, a obriga a reavaliar-se desde a infância até o calvário, via crucis onde apenas um homem, Jesus Cristo, destoa do comportamento comum e atenua sua desgraça. Sendo verdadeiramente útil, a humildade da serva, em seu leito de morte, parece cumprir uma missão muito mais nobre do que a sua. “A Morte de Elivonete Xavier é, neste sentido, uma novela existencialista, posto que a consciência emerge e conduz a santa criatura que ora nos deixa, à autorreflexão, em busca de um sentido verdadeiro para a vida e a morte.

Talvez devêssemos esperar que a nossa homenageada não entregasse os pontos ao fechar as cortinas, quando a vida surpreendentemente continua. Afinal, Elivonete “Não tinha mais medo da morte, porque também a morte desaparecera de sua frente. Em lugar dela, via luz. Muita luz. ‘Que alegria!’”. A alegria é um dom de Deus e a esta altura dos acontecimentos que marcaram a despedida de Elivonete, reafirmamos a esperança na ressurreição, haja vista que, na cena derradeira, a vida se esvaindo, a nossa heroína permaneceu consciente e relata-nos a promessa fantástica do Cristianismo. Maravilhados vemos este anjo que parte era incapaz do niilismo, apesar de imensamente corajosa, era movida não tanto por um medo vulgar de morrer ou da morte quanto por sua própria vitalidade e vitalismo, “que não podiam aceitar nenhum sentido de deixar de existir”.

Por possuir um espírito religioso, a nobre conterrânea, com certeza, lança uma severa invectiva ao conhecimento científico, tão apreciado e louvado por muitos. . O orgulho vão dos médicos (cientistas) contrasta com a absoluta incompetência do seu saber para curar um paciente desesperado. A “importância” com que um deles “dava a entender: basta que se submeta a nós e tudo resolvermos”, não resiste a um dado concreto bastante revelador: a divergência dos “especialistas” quanto ao diagnóstico. A tal ponto persiste a incerteza científica que, à revelia dos médicos, Elivonete perdeu qualquer dúvida quanto ao seu estado: sabia que iria morrer. Como de fato morreu. Esta convicção, deixa subentendido, para fins de julgamento moral, que a causa da doença de Elivonete foi aquele asbarrão, a partir do qual surge o sintoma. No entanto, deduz-se dos demais sintomas, claramente explicitados, que o mal que aniquilou a nossa amiga foi provavelmente algo além da Covid19.

Seja como for, a desgraça que se apossou da nossa amiga se associa à futilidade de nossa existência, motivo pela qual a origem da afecção relaciona-se a um vírus inexistente mas que mata e ceifa muitas vidas. “Morrer de Covid19” está sendo a maneira encontrada para justificar mais um mal que assola a humanidade pondo de lado outros males maiores e mais letais. Mesmo assim, tais fatos nos mostram quão mesquinhas são nossas vaidades, tantas vezes mais importantes aos nossos olhos do que as amizades e os amores que conquistamos. Só nos damos conta disso quando estamos prestes a cair dentro do “saco negro” da morte: todo o luxo que aprecia ostentar, a fim de nivelar-se ao seu meio social, não passa de embuste. Por extensão, toda a sociedade, baseada na aparência, só pode ser falsa.

Por mais realista que seja a morte de Elivonete Xavier (trata-se de uma morte física), não há dúvida de que extingue-se primeiro a falsa imagem da mulher que parte, para daí nascer a nova ELIVONETE XAVIER. É pena que, em geral, o “eu” de cada um de nós se manifeste só na hora da morte, quando é tarde para uma existência genuína. Ao menos neste plano, e não sabemos realmente se haverá outro para nos corrigir.

Vamos agradecer a Deus por ter-nos concedido a vida de tão brilhante criatura entre nós. Que o choro dos familiares e suas amigas do Colégio Nossa Senhora das Dores se convertam em preces pretendendo o Eterno Descanso desse anjo que agora parte para o Reino Esplendoroso da Alegria.

Essa minha homenagem póstuma é extra[ida de um texto escrito por Leon Tolstoi.

clira
Enviado por clira em 27/06/2021
Reeditado em 13/11/2021
Código do texto: T7287628
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