MEU PAI

MEU PAI

Hoje mais velho do que ele quando se foi, tenho plena consciência da grandeza do homem que foi meu pai. Se na erraticidade eu pude escolher quem seriam meus pais, confesso que eu acertei.

Meu pai, de origem humilde, nascido em uma simples aldeia próxima da cidade do Porto em Portugal, antes mesmo da 1a.guerra mundial, recordava-se com carinho da sua infância, aos afagos de sua vozinha querida, de quem nunca se esqueceu.

Entretanto, aos 9 anos, teve de enfrentar uma longa e certamente sofrida viagem de navio para o Brasil, pois sua avó já não tinha boas condições de saúde para criá-lo. Raramente o vi falar sobre isso, talvez nunca, mas é fácil imaginar o quão penoso foi para ele, ainda criança, viajar sozinho em um navio de precárias condições àquela época, somado ao fato da incerteza da presença de um tio distante a esperá-lo no porto do Rio de Janeiro. Estamos falando de 1919. Felizmente, o tio estava lá.

Tudo que sei sobre esse período, não me foi contado por ele. Nunca foi um homem de se queixar do passado. Fui montando sua história, juntando uma palavra que lhe escapava aqui ou ali, uma referência, um fato, uma lembrança boa (como as frutas colhidas no pé pelos caminhos de sua aldeia), quem sabe uma saudade ou muito raramente um lamento esparso. Nunca deixou extravasar mágoas, mazelas, desgostos ou infortúnios. Seguiu em frente, projetando um futuro melhor.

Foi trabalhar, ainda menor, em um simples armazém, pois tinha pouca instrução. No entanto, era dotado de extraordinária capacidade de trabalho, de inteligência, de vontade de progredir e de vencer. Mas não foi fácil. A princípio, morou nos fundos do armazém, onde descansava o corpo, exausto por carregar caixotes de compras durante o dia, deitado sabe-se lá em que tipo de colchão.

Foi assim, com brio e responsabilidade, que conheceu e despertou a atenção de um homem, português como ele e seu patrão, a quem respeitava como a um pai, e que o considerava como um filho. Um dia, não sei precisar quando, esse homem lhe ofereceu sociedade. Com trabalho árduo, conseguiram em algum tempo abrir 3 novas casas, reconhecidas no ramo pela seriedade e pela correção nos seus negócios, tornando a firma uma referência no comércio da época.

Foi em meio a sua ascensão profissional que ele conheceu uma linda jovem de olhos claros, dez anos mais nova, por quem se apaixonou. Casaram-se e tiveram apenas um filho: eu. Lembro-me, ainda menino, de ver meu pai muito pouco, pois o trabalho o prendia de segunda a sábado e nas manhãs de domingo. Durante a semana, ele saía muito cedo e quando chegava eu já estava dormindo. Porém o amor que me transmitia era tanto, que sua ausência forçada não me incomodava, pois o amor de minha mãe por mim e pelo marido, me faziam entender que éramos uma família unida e feliz.

Mais tarde, quando tinha 5 anos, talvez para ficar mais comigo, passou a me levar aos jogos do Vasco da Gama no estádio de São Januário. Foi ali que surgiu minha paixão pela cruz de malta. Comecei torcendo pelo Vasco, porque isso o fazia feliz. Recordo-me das maçãs que comíamos nos intervalos dos jogos, descascadas com seu canivete. A alegria pelas vitórias conseguidas pelo clube, que possuía grandes equipes àquela época, nos uniram ainda mais.

O tempo passou e meu pai era feliz. Havia conseguido êxito na sua dura vida profissional e tinha constituído uma família. Família aliás que cresceu, quando ele também adotou a família de minha mãe, como sendo sua. Apesar de sério e responsável nos negócios, possuía excelente bom humor, parodiando ditos populares ou criando histórias jocosas. “De onde menos se espera, aí é que não acontece nada mesmo.” “Devagar de vai ao longe, mas leva muito mais tempo.””Água mole em pedra dura, tanto bate que espalha longe.” A despeito da sua verve cômica, era bem sério na minha educação. O essencial nunca faltou, mas não tínhamos nada em excesso.

Quando completei 18 anos, ainda estudante, tirei a carteira de motorista e desejava dirigir. Meu pai tinha carro, uma Chrysler mecânica, com incríveis bandas largas nos pneus, que eu tinha de lavar se quisesse usar o carro nos sábados à noite. Dizia ele que me ajudaria a comprar um carro no dia em que eu começasse a trabalhar. “Automóvel é uma família a ser sustentada”. Não teve jeito, fui trabalhar e estudar.

Os últimos anos de sua vida foram marcados por diversos AVCS e por sucessivas pneumonias. Lutou bastante, mas seu coração não aguentou e ele partiu antes do combinado aos 74 anos. Deixou uma saudade imensa e uma perda irreparável, somente amenizada pelos nascimentos das minhas netas. Soube, através de uma prece espírita, que ele faz um trabalho junto aos irmãozinhos suicidas. Talvez por conta de seu trabalho, ele teve o direito de me visitar num sonho absolutamente real, onde pude lhe apresentar a expansão do parque das águas de São Lourenço, cidade que ele amava desde jovem.

Pai! Perdoe-me por não lhe agradecer em vida como você merecia. Meu querido pai, só me resta lhe deixar esse tributo agora publicado e esperar em Deus a oportunidade de revê-lo e a minha mãe em outro plano. Até um dia.

ABC DAS LETRAS
Enviado por ABC DAS LETRAS em 08/08/2021
Reeditado em 08/08/2021
Código do texto: T7316368
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