Depois de ter você, e a amendoeira !

Verídico ou não, lí nesta data que Bethânia ( há nomes que dispensam complementos), escreveu a lindíssima "Depois de ter você", citando ;

Depois de ter você

Poetas para quê?

Os deuses, as dúvidas

Pra que amendoeiras pelas ruas?

Para que servem as ruas

Depois de ter você?

..a partir do livro Fala, Amendoeira- de Carlos Drummond de Andrade, de onde se extrai o texto abaixo.

“Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista deparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e, ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador de seu azedinho. É como se o cronista, lhe perguntasse – Fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

— Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

— E vais outoneando sozinha?

— Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

— Somos todos assim.

— Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

— Não me entristeças.

— Não, querido, sou tua árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves… Outoniza-se com dignidade, meu velho.”

Carlos Drumond de Andrade :

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Poético, suave, lírico, profundo e intenso. Há de se possuir o talento e a sensibilidade de Drummond para abordar e expressar o poema que traz a contemplação de alma, que somente a natureza proporciona-nos. A Lua, as estações constantemente a nos ensinar que a vida é repleta de ciclos: vivamos!!! Outoniza-se, mesmo aqueles que incansavelmente primaveram, florindo após cada inverno. Reencetamos, mantendo a esperança de renovarmo-nos ao término! Todos os dias mais uma nova história amalgamada ao nosso passado, porém conjuga-se para nascer um futuro.

Requer a vivência de um momento sublime para subjugar uma composição desse calibre. Reflito cá com as paredes cúmplices de meu quarto: quantas ou qual pessoa com quem se esteve vale tal citação? Que saiba o valor da gratidão aqueles que tiveram tal oportunidade. Presença, feitos e frases que sublimam o tempo, o som do vento, do avião, do trânsito, da avenida, do mundo, tornando em universo o momento, o local... eis a pessoa inesquecível !

Esgotado todo o suspiro poético, depois de ter esta pessoa, a vida nunca mais é a mesma! Depois de ter este alguém, só ele !

Letranda
Enviado por Letranda em 08/06/2022
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