Pe. Sigaud

Por Plinio Corrêa de Oliveira

Quando, por volta de 1935, fiz pela primeira vez um retiro espiritual no Seminário do Espírito Santo, chamou-me a atenção um jovem Sacerdote que superintendia o serviço dos retirantes de modo notável. Prova de que as pessoas notáveis podem fazer notavelmente ainda mesmo as coisas menos notáveis. Ele era alto, magro, de busto largo e muito ereto. Um andar peculiaríssimo: movia as pernas sem que a posição e atitude do tronco se modificasse em nada com isto. Passadas rápidas e fortes, mas sem nenhuma agitação. Solas de borracha. O único ruído de seu andar era produzido pelo vasto panejamento da batina. O conjunto dava uma singular ideia de coisas heterogêneas, muito bem fundidas: força, resolução quase germânica; ao mesmo, tempo uma delicadeza temperada nos amáveis moldes do “vieux style” com finuras que chegavam facilmente aos extremos da sutileza mineira. A mesma impressão dava a voz, muitíssimo grave, máscula, mas com um aveludado delicado e por vez até afetuoso. E também as mãos grandes, fortes, mas delicadas e bem tratadas. Tudo isto, sem falar no principal, que era a cabeça. Uma cabeça talvez um pouco pequena para o corpo, na qual luziam olhos vivos, que atestavam ao primeiro lampejo, que aquela cabeça era “muito maior por dentro do que por fora”. Nariz fortemente pronunciado, vigoroso, quase militar. Queixo e boca pequenos, delicados, muitíssimo sutis. Testa larga, cheia de pensamentos e de reserva montanhesa. E, pairando sobre o conjunto, um ar de simpatia, de bondade, uma vontade de agradar e de bem fazer, que era a nota dominante de toda a sua personalidade.

A certa altura, esse jovem Sacerdote me abordou. Passeava eu a sós, por uma alameda do Seminário. Não quero dizer qual o assunto, hoje a milhas da atualidade, mas então muito delicado e importante. As circunstâncias colocavam em mãos dele uma deliberação de longo alcance para os interesses da Igreja no campo social. Ele queria saber como eu pensava. Notei que sua tendência era diversa da minha. Expus meu ponto de vista com franqueza. Meu interlocutor era desses de que se pode discordar sem os ofender, e que sabem opor argumento a argumento, pesando tão bem os que dão quanto os que dá o adversário. Em linhas gerais, chegamos a acordo. Mas ele quis provas para se decidir. Foi só depois de eu lhas ter enviado dias depois, que ele realmente tomou posição. Personalidade firme, mas honesta, que só se rende a argumentos, e que sabe que ser convencido por alguém, não é ser vencido.

Deste primeiro episódio, nasceu uma amizade. Há assuntos que ligam a fundo as almas. Esta amizade se estendeu ao longo de mais de dez anos em que os dois nos encontramos em todas as situações possíveis: da dor e do júbilo, da esperança e do passageiro desalento, da incerteza e da decisão. Juntos recebemos palmas juntos recebemos censuras, nossos corações pulsaram segundo o mesmo ritmo, em presença de todos os assuntos da atualidade, passamos por tudo que pode unir e desunir homens. E posso dizer que a cada nova etapa mais se radicava em mim a convicção de suas qualidades peregrinas e verdadeiramente excepcionais.

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Como as enumerar? Mazarino dizia haver em Luiz XIV “de l’etoffe pour faire quattre rois”. Algo de parecido se dá com o Padre Sigaud. Padre, inteiramente Padre, exclusivamente Padre, fazendo questão fechada em não ser senão Padre, ele leva o respeito ao estado sacerdotal até as mais delicadas minúcias. Nunca, por exemplo, assinaria seu nome sem o anteceder do título glorioso do Sacerdócio. Também jamais o vi, mesmo em momentos de repouso, senão com o traje eclesiástico absolutamente tão composto e completo quanto se usa comumente. Filho extremoso de sua congregação, o Pe. Sigaud é um autentiquíssimo Missionário do Verbo Divino. Este é o próprio fundo de sua alma, toda ela sacerdotal. Mas neste Sacerdote, três coisas podemos considerar.

Antes de tudo, o teólogo, em cujo feitio vejo os predicados que lhe vêm de sua ascendência francesa. Conhecendo a teologia até seus menores meandros, o Pe. Sigaud tem, em suas ideias, em suas explicações, em seus escritos, uma precisão que é o distintivo do espírito francês. Não a precisão morta de uma coisa meramente teórica. Mas por uma precisão cheia de luz, de vida, em que os “aperçus” práticos, a todo momento, ilustram e completam a mais alta expressão escolástica e doutrinária do pensamento. Nota-se, ainda, que o Pe. Sigaud tem, em tudo, um pouco de mineiro. Uma argúcia especial lhe dá um tino para perceber o erro até o fim, lhe descobrir a conexão com outros erros, e reconstituir assim por simples indícios sistemas inteiros, que é verdadeiramente o que de mais perfeito tenho visto no gênero. Assim, diante de uma simples opinião sobre sociologia, e outra sobre arte, o Pe. Sigaud pode, com toda a segurança, recompor toda a mentalidade de um homem, em certos casos. E com acerto surpreendente.

Ao lado do teólogo, um fino temperamento de artista. O Pe. Sigaud, se tivesse tempo, daria um crítico de arte, e quiçá um artista de primeira água. É um dom generalizado em sua família, de que ele largamente participa. E esta feição artística impregna toda série de hábitos, atitudes, costumes, opiniões suas, dando-lhes uma atração e um encanto pouco comum.

Por fim, o Pe. Sigaud tem a fibra de um verdadeiro homem de ação. Sabe ser macio como poucos. Sabe agradar. Mas sabe também, quando chegado o momento, cortar o que se deve cortar, e romper com o que se deve romper.

O Pe. Sigaud é verdadeiramente um chefe. Sabe fazer, mas sobretudo sabe arranjar quem faça, ensinar a fazer, dirigir na execução. E, com estas qualidades, nas suas mãos florescem as sementes mais difíceis em solo por vezes bem pedregoso.

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Artigo saído no jornal “Legionário”, de 24/III/1946, pág. 02

Rafael Aparecido
Enviado por Rafael Aparecido em 11/02/2024
Reeditado em 12/02/2024
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