Velório

A lembrança reprime os olhos lânguidos, inchados de tantos choramingos, dos parentes do morto. Homens, mulheres e crianças choram. O ar triste polue quem entra na sala intransitável, fazendo-o chorar também. As lágrimas correm pelos rodapés, formando riachos de água salgada. A empregada, de instante em instante, passa o rodo no piso alagado. A água vai subindo mais e mais. A pobre velhota não consegue dar conta do aguaceiro. Pessoas passam na rua, ouvem os lamentos e entram curiosas. Logo, choraram também. Os ralos vão entupindo um a um. A água salgada já bate acima da cintura. As crianças subem em cima do caixão e mergulham de cabeça, nadando em pequenos círculos. A filhinha do defunto, sem diminuir as gotinhas na face amarela, entra no quarto, veste um biquininho e junta-se aos demais pirralhos. Os vizinhos, ouvindo aquela folia, correm para ver o que está acontecendo. Sem muito compreenderem, retornam as casas e voltam com bóias debaixo dos braços. O caixão flutua no centro da sala. A água sube rapidamente, vazando pela janela e desemboca no jardim, formando uma pequena cascata. A correnteza arrasta o caixão janela à fora. A multidão, desesperada, procura detê-lo. Um mais audaz salta sobre o caixão e rema contra a correnteza. Nada adianta. Lá se vai o defunto e o valente salvador. Os vizinhos e as bóias despencam pela janela. Algum debochado tem a brilhante idéia de chamar os bombeiros, que vieram sem hesitar. Cercam a casa, jogam salva-vidas pelas janelas e aplicam respiração boca-a-boca nos desfalecidos. Muitos não se salvam. No dia seguinte, jornais expoem manchetes sensacionalistas: "Defunto mata quinze".

Marcelo Melero
Enviado por Marcelo Melero em 29/01/2006
Reeditado em 08/10/2008
Código do texto: T105346