Dona Gralha

"Dio, cometiaaaámu..."

Sei que não é assim que se escreve, mas é assim que Isadora cantava todas as manhãs ao abrir as janelas da casa.

Deixava o sol entrar e a voz sair e se espalhar pela redondeza.

Se ela tivesse um pingo de afinação, juro que não me incomodaria com a serenata, ou melhor, com a "ensolarata".

Mas, do outra lado da rua, despertando para as batalhas de um novo dia, a última coisa que eu queria ouvir era a voz esganiçada da minha vizinha.

Nesses momentos, ainda debaixo das cobertas, na minha cama macia, eu agradecia ao Congresso Brasileiro que proibiu o porte de arma de fogo!

O pior é que Isadora só cantava este refrão, uma, duas, três, dez vezes! e cada vez pior, pois o seu "instrumento de tortura" (sim, porque aquilo não podia ser enquadrado na categoria de voz) ia perdendo a potência a cada repetição.

Cheguei a dar queixa na polícia, mas não havia lei que proibisse alguém de cantar àquela hora do dia.

Aventei a possibilidade de instalar isolamento acústico pelo menos no meu quarto, mas o preço me fez desistir.

Procurei um padre, depois um pastor e, por fim, um pai-de-santo...

Fui ao analista, ao otorrinolaringologista, ao dermatologista (já que a irritação estava me causando alergia).

Isadora não parava de cantar, eu não parava de me incomodar.

Só não pensei na mais simples das soluções,: atravessar a rua e pedir-lhe educadamente que cantasse um pouco mais baixo.

E foi o que fiz depois de uma conversa com o "seu" João da padaria, em que ele me aconselhou tal medida.

Porém, para minha surpresa, descobri que Isadora, já era bastante idosa (eu nunca a tinha visto antes! que péssimo relacionamento com a vizinhança!), e cantava para agradecer a Deus pelo dom da vida que se renovava a cada manhã em que ela acordava.

Como estivesse perdendo a audição, não tinha noção do incômodo que causava -e também não dispunha de recursos para tratar o problema.

Esta história poderia terminar por aqui, me ensinando, e a todos que tomaram conhecimento dela, um pouco de tolerância.

Movidos por uma vontade de auxiliar aquela "velhinha insuportável" (não sei se haveria aqui um interesse puramente egoísta de nos vermos livres da "gralha grisalha", conforme era conhecida em algumas "rodas"), todos os vizinhos, ou uma grande maioria, resolveram se cotizar, enviando-a a um especialista e pagando as despesas do aparelho.

Dona Gralha, quer dizer, a boa velhinha recuperou o gosto pela vida, e, agradecida, logo na primeira manhã de audição perfeita, voltou à janela e cantou a plenos pulmões: "Dio, cometiaaaaaaaámu..."

StelaStela
Enviado por StelaStela em 30/08/2008
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