Meu nome é Keyla!!!

Decidi desligar o fogão e sentar para descansar. Quero dizer, para escrever. Tenho, como diz Dona Menô, a eternidade para descansar.

Estou cansada de um dia todo lidando com doenças e burocracias. Deixo o jantar para outro dia. Como uma banana e tudo bem.

Hoje o meu diário de bordo vai ser retroativo, ou seja, um resumo dos últimos dias.

Foi uma semana difícil. Há uns dias fiz uma cesareana de uma paciente (uma verdadeira indiazinha). Seu bebê nasceu com carinha de índio, só que brancão que nem o pai - a mistura das raças, miscigenação, a nossa relíquia brasileira.

A coisa curiosa foi justamente a hora do parto. Não do parto em si, mas do que aconteceu nesse momento mágico.

Eu estava particularmente feliz e de bom humor. Nem reclamei de estar num hospital que não é lá essas coisas.

Quem me conhece sabe que isso é uma raridade eu não reclamar de nada. Minha fama é de ser “reclamona”. Para alguns idiotas, que não precisam ter responsabilidade com nada, isto é um defeito. Eles deveriam morar em países que processam a gente até por peidarmos diferente da maioria.

No Centro Cirúrgico o “carrinho de parada” chamou minha atenção.

Carrinho de parada é aquela geringonça que tem uma televisão de monitorar o coração, a pressão e a oxigenação do doente, com toda a parafernália para reverter a parada do coração (cardioversão), essas coisas que vocês veem em filmes.

O monitor era lindo! Enquanto as pessoas admiram um shopping, lojas, roupas e jóias, a gente, numa madrugada, admira um carrinho de parada cardíaca. Mas ele era realmente de primeiro mundo, gente! O hospital era uma bosta, mas o monitor...

Só não entendi porque tiraram o monstrengo da parede (do girovisão), para colocarem em cima de um armário com rodízios.

De repente toda a minha equipe (menos o anestesista), antes de se escovar para entrar na cirurgia, estava babando e olhando para o nosso “totem”. O anestesista olhou de lado, sorrindo por dentro, achando que éramos trogloditas diante de tal tecnologia.

Já falei que meu anestesista é o melhor do Brasil? Acho que já... Mas é mesmo! E sabem por quê? Porque ele é muito bom, é perfeito, é carinhoso, competente, atencioso, boa gente e calado (um túmulo): só fala besteira na hora certa, como todo bom mineiro.

Ele fica lá, quietinho, sentadinho, escrevendo numa prancheta, anotando, ao lado da paciente, observando cada detalhe de suas reações, enquanto a gente, que está operando, grita, fala alto, se estressa, briga, ri e se concentra.

Na hora da coisa ficar preta, todo mundo fica calado e sério, mas quando vai tudo bem, fazemos piadas e até cantamos... Sim! Pelo menos eu canto! Todo mundo odeia, é verdade, já que sou totalmente desafinada. Menos a paciente, que quando está acordada, sabe que se eu canto, está indo tudo bem.

Nesse dia resolvi cantar “London, London”, de Caetano Veloso. Canto muito mal em inglês - aliás, em qualquer língua. Não agradando, passei para Gal Costa, com “MEU NOME É GAL”. Tentei imitar seus agudos e acho que causei alguma lesão nos tímpanos dos meus auxiliares.

O pediatra nem estava aí com a hora do Brasil: entrava e saía; segurava bebê; mostrava bebê; cuidava de bebê. Uma coisa louca. Eu não aguentaria essa vida.

O pediatra também é mineiro, do estado de Minas Gerais (explico para os estrangeiros entenderem) e meio “zen”. Ele acabou de ler um tal livro, que vai me emprestar – “Menos Prozac e mais Balzac” (ou será Platão?). Eu não sei bem o que é que ele quer que eu saiba no livro, mas, com certeza, acha que estou precisando saber...

Meu anestesista “suporta” todas as torturas que possam aparecer, inclusive do meu canto de sereia, mas naquela cirurgia ele me pediu baixinho, escondido pelos campos cirúrgicos, sentadinho em um banquinho, como se fosse uma entidade incorporada: “Pelo amor de Deus, dá pra parar de cantar, Leila?”.

Todo mundo riu e se sentiu aliviado. Até o monitor maravilhoso agradeceu.

Depois que a cirurgia acaba, a gente começa a escrever, anotar, coisa e tal. O anestesista ainda fica um bocado de tempo trabalhando, até a paciente “retornar”, em condições de ir para seu quarto.

Aí, aconteceu:

Meu anestesista levantou repentinamente de seu banquinho providencial e esbarrou no monitor cardíaco, e este caiu sobre suas costas.

Até que ele não era muito pesado - só mesmo no seu preço... Se aquela coisa caísse no chão, com certeza alguns dólares iriam para o esgoto - muito mais do que tudo que a equipe ia ganhar naquele parto, considerando a miséria que ganhamos...

Eu vi o lance e fiquei transtornada. Uma cena exótica:

Meu anestesista equilibrando o monitor nas costas, calado, todo sério, olhando pra gente, que não sabia o que fazer.

Eu cheguei perto dele e perguntei: “Tá doendo? Você se machucou, Israel?”.

Ele me olhou incrédulo e disse: “Dá pra você parar de perguntar e me ajudar a tirar esta merda das minhas costas?”.

O monitor brilhava, assustado, cheio de traçados eletrocardiográficos de alguém que tinha caído do 22º andar. A paciente, que se encontrava meio sonolenta, viu aquilo e devia ter imaginado que era normal ver alucinações: um anestesista levando uma televisão nas costas, enquanto sua cirurgiã gritava com ele, perguntando o óbvio.

Volto dez dias atrás:

Hoje retirei os pontos de uma outra “cesareana”. Dessa vez, uma bela representante da África. Seu nome é Keyla.

Sua cesareana tinha sido indicada para que o bebê não entrasse em sofrimento por falta de oxigenação.

Tudo perfeito, “tudo lindo e maravilhoso”, até a hora dramática: a abertura do útero. Sangrou pra danar.

O marido, satisfeito, fotografava tudo, filmava e sei lá mais o quê - totalmente alienado à realidade...

Marido, nessa hora, só serve para nos deixar tensos, diante da preocupação com a cirurgia. Se ele presenciar algo perigoso, pode descompensar e atrapalhar nosso trabalho. Por isso eu detesto leigos no centro cirúrgico.

De vez em quando até deixo entrar alguém, mas existe um pacto e não é qualquer um que o pode seguir. Parto é coisa séria - seja normal ou cirúrgico. Festa a gente faz depois. Na hora nossa adrenalina está a toda e nossa responsabilidade também.

Se me perguntarem se gosto de marido ou parente por perto, vou dizer que não. Cada vez mais estou convencida de que marido ou qualquer pessoa que não faça parte da equipe, tem que ficar a léguas de uma sala de cirurgia.

O melhor que posso fazer para um paciente é exercer meus conhecimentos e dar todo o apoio para aquela pessoa sair bem da intervenção cirúrgica, mesmo tendo eventuais complicações, que são previsíveis ou não.

Mas o marido era amigo e ela era amiga, e a gente, de vez em quando, deixa rolar e dá uma colher de chá.

O sangramento estava demais. Todo mundo se calou e trabalhávamos depressa, estancando a hemorragia, cada um na sua função.

O marido nem se dava conta da emergência e a gente procurava falar em códigos. Eu estava a ponto de mandar o moço se retirar, apesar de ele ser repórter e ter vivência suficiente para assistir qualquer coisa, mas ali estavam sua esposa e seu filho.

Eu pedia freneticamente as pinças para minha instrumentadora, com sinais padronizados com a mão. Ela estava concentrada na coleta do sangue umbilical. Daí, comecei a gritar: “Kelly!! Mais Kelly” Mais! Me dá outra merda de Kelly!!!”.

Kelly é uma pequena pinça para hemostasia - para apreender vasos sanguíneos e estancar sangramentos.

Keyla, minha paciente, separada da cirurgia por um campo cirúrgico, um pano, exclamava: "Mas, Leila, meu nome é Keyla, não é Kelly, pôxa!...".

Eu não sabia se ria, se chorava ou se a mandava calar a boca.

“Coloca esta mulher pra dormir, Israel, e cala a boca, Kelly! Quer dizer, Keyla!”.

Meu anestesista ria de soslaio, assim meio pelo canto da boca, achando tudo normal (se é que é normal trabalhar comigo...).

Meu auxiliar, Décio, falava o tempo todo: “Calma, calma... Eu estou aqui... Tudo correrá bem”.

Este é meu herói. Ele sempre está muito calmo, mesmo que tenha úlceras ou tiques nervosos de vez em quando.

Minha instrumentadora não falava nada. Se falasse, eu daria o maior esporro, coitada. Daí, a gente ficaria uma semana de mal e depois faria as pazes. São muitos anos de brigas e reconciliações amorosas. Todo mundo pensa que a gente tem um caso, mas, tanto ela quanto eu, não somos chegadas...

Nesse dia não deu pra cantar “Meu nome é Gal, meu nome é Gal”...

Dentro de minutos tudo se abrandou e continuamos a cirurgia, como se nada tivesse acontecido (com o marido fotografando).

Ainda bem que nossos rostos são tapados por máscaras. Imagino nossas caras nessas horas. E as hemorróidas também...

Temos que ter absoluta certeza do que fazemos, de como estamos emocionalmente e do que temos como experiência para sabermos se somos capazes para tal emergência. Temos que ter uma equipe trabalhando em consonância, ter amizade e companheirismo, para que possamos ficar “tranquilos”.

Cada um sabe fazer a sua parte e nenhum de nós é onipotente nessa hora. Todos trabalham em conjunto. Um componente depende do outro. Até o auxiliar de enfermagem, que circula ao nosso lado para nos apoiar, tem que ser “safo”, competente. Se um instrumento der defeito, mesmo aquele que consideramos insignificante, todo um trabalho pode ser prejudicado. Trabalhamos com vidas - não com máquinas. Se um falhar, todos falham e quem sofrerá a maior consequência é o paciente.

Por isso canto “Meu nome é Gal”, quando tudo acaba bem - desafinada ou não -,  mesmo que não me entendam. A gente começa a falar do show que está passando (e não vamos assistir); da lagosta que prometeram fazer pra gente (e nunca vamos comer); do filme de “não sei quem” e do passeio de fulano de tal (que não teremos “tempo”, por enquanto, de fazer...).

Detalhe no último parto:

Depois que reclamaram de minha voz, voltamos pra casa no mesmo carro e cantávamos “AGONIA”, de Oswaldo Montenegro. Em plena madrugada, cada um num tom. A coisa mais horrível que ouvi na vida...

Nós somos heróis: ganhamos pouco e trabalhamos como mestres. E para quê?!

Sei lá...

Um beijo para a minha equipe.


Leila Marinho Lage
Setembro de 2006
http://www.clubedadonameno.com
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 10/10/2008
Reeditado em 12/10/2009
Código do texto: T1221880
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