Trilha Calórica: Boca escancarada, prato cheio, pança enorme.

Ela nasceu numa família numerosa. Como toda geração dos anos 40 e 50 pensavam-se apenas em ter uma família, trabalhar para mantê-la e envelhecer rodeado pela próxima geração que sairia do tronco. Era orgulho certo e satisfação para manter uma conversa animada nas rodas que se faziam no fundo do quintal.

Nos finais de semana, era normal haver um encontro, e sempre havia uma novidade: era fulana que estava esperando bebê, era a filha de Fulustreco que estava já de casamento marcado, era o irmão de Ciclano que trocou a mulher que não dava fruto por outra mais nova, e o tiro foi certo, pois a Maricota já estava esperando o próximo rebento.

Comida não podia faltar e como conseqüência, as panças enormes eram sinal de abastança. As crianças eram rechonchudas; quanto mais gordas mais elogiadas. Resultado: elas só viviam mastigando e na mão ou nos bolsos havia uma quantidade de comida suficiente para saciar a fome de um adulto.

Nas casas poderia faltar tudo menos um fogão a lenha onde uma tigela de barro estaria à espera de um guisado ou quem sabe de uma feijoada. Bocas famintas não faltariam e em meio às gargalhadas e garfadas a comida ia sumindo até não deixar rastro.

Foi num desses encontros que conheci vários bichos de zoológicos que andavam sobre duas pernas. Era um tal de Hipopótamo, Elefante, Búfalo, Dona Panda, seu Ursão; entre outros mais, encontrei: Jamanta, Jaburu, Dona Redonda, Bolinha, Pimpão...etc. Todos avantajados e orgulhosos do espaço que ocupavam.E que espaço!

O tempo foi passando. Os encontros acontecendo. Os pratos cada vez mais cheios e os ponteiros das balanças subindo. Mas pra surpresa de muitos que achavam que a vida era pra ser vivida dessa maneira, um dia a ficha começou a cair.

Seu Ursão desmaiou quando ia para o trabalho. Ia dirigindo seu carro, e por pouco não causou um desastre. Quando parou no Posto para reabastecer o carro e a barriga, caiu sobre o volante e ao ser socorrido, descobriu que havia enfartado. Ficou internado, recebeu todos os cuidados necessários e após uma dieta rigorosa que deveria seguir dali pra frente, teve alta. Ficou murcho e pelancudo, mas parecia que tinha aprendido a lição.

Depois de um tempo, como não sentisse mais cansaço, decidiu que sabia mais do que os médicos que apesar de passarem tanto tempo na faculdade saiam mais burros do que nunca. Ele é que sabia o melhor para sua vida. Voltou a comer e com mais vigor e prazer. Isso é que é saber viver!

Seu Elefante, que comia mais de um quilo de comida em cada refeição, dois litros de suco adoçado por meio quilo de açúcar, e para completar,de sobremesa dez laranjas e um copaço cheio de mel e farinha. Na falta de laranja, entrava umas dez mangas ou uma palma de banana. Teve um piripaco e se foi alimentar a terra, como ele dizia.

Seu Ursão quando alguém lhe advertiu mostrando o caso do seu Elefante como exemplo, achou que o que aconteceu era parte da vida. Era o tempo de Elefante ir, dissera ele.

Búfalo, rapagão que poderia ser bonito se não fosse os excessos que fazia parte do seu amado corpinho continuou sua vidinha de sempre. Fazer o quê, se a família toda era assim? Foi dormir, e esqueceu-se de acordar.

Alguém o achou tão bonitinho! Parecia que estava sorrindo. E que bochechas rosadas! Difícil foi vesti-lo e colocá-lo no paletozinho de madeira.Mas seu desejo foi realizado: dar trabalho aos que se ofereceram para levá-lo até o lugar de descanso.Quanto mesmo pesa esse cara?

Hipopótamo resolveu que deveria fazer regime, procurou um cardiologista, depois dos exames, levou um susto. Taxas alteradas, teria que fazer um tal de Cateterismo.Tudo entupido! Quando voltou da consulta, entrou na casa do seu irmão, o Bolinha, e esse quando ouviu toda história, foi logo dizendo:

_ É por isso que eu não gosto de ir a médico! A gente vai bonzinho e volta com uma tonelada de doença. Pior pra você que agora vai viver acreditando que está perto de ter um troço, e buff!

Coitado do Hipopótamo! Saiu dali pior e certo de que deveria ter continuado sem saber de nada. E agora, a morte seria uma sombra na sua existência que antes era regada a molhos e doçuras. Que amargura, meu Deus!

Deu ouvido ao irmão, e fez de conta que aquela consulta nunca aconteceu. Não deu outra, foi festejar o aniversário do sobrinho. Êta, festa animada! Uma rodada de pizza, sorvete pra valer. Ou dia! Viva a vida! Sentiu um calorzinho, foi pro chuveiro, ficou no banho até que alguém percebeu que saia água por baixo da porta, e ninguém respondia do lado de dentro. Arrombaram a porta, ali estava seu Hipopótamo do jeito que todo hipopótamo gosta: molhadinho, molhadinho.

E agora seu Ursão, dá pra acreditar que é preciso mudar os velhos hábitos alimentares da família, praticar exercício e ter uma vida menos estressante?

_ Não sei...Ainda não estou convencido. Pode ser que seja mal de família. Essa coisa de hereditariedade...Sei lá!

Continuaram se entupindo cada vez mais. Veio a hipertensão, diabete, AVC, e por aí vai.

_Fazer o quê? É uma fome que consome cada pedaço de nós!Respondeu seu Pimpão. Cortaram suas duas pernas. Perdeu a visão. Continuou comendo, pois se fizesse regime, ai sim morreria mais rápido. Não foi preciso regime pra matá-lo. Deu um adeusinho a esposa quando passou mal, acreditando que voltaria. Não é que estava enganado?

_E agora, seu Ursão? Qual é a sua opinião sobre esse velho tema?_ perguntou alguém.

_ Continuo pensando. Quando tiver chegado a uma conclusão, lhe darei uma resposta. Por enquanto, vou continuar nos passos dos antigos.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 05/01/2009
Reeditado em 06/01/2009
Código do texto: T1369585
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