Sombra e seu batizado/ com áudio

Republicação do primeiro texto de humor que eu fiz, a pedido do meu amigo Di Amaral. Republico-o, para que seja ele, o meu texto de número 400.

Filho de pai ateu e de mãe espírita, Sombra nunca se viu obrigado seguir qualquer religião, entendendo-se por "qualquer religião" a nossa querida religião católica, cujo saco, o célebre escritor Paulo Coelho -por motivos mercadológicos- não se cansa de puxar...

Quando Sombra do alto de seus seis anos, acordava aos domingos e observava -vagamente- seus irmãos se preparando para a missa, agradecia fervorosamente a Deus, nunca ter sido obrigado a frequentar a tal igreja, podendo continuar o seu delicioso descanso matinal. Seus irmãos, que eram mais velhos, sofreram uma grande pressão da avó paterna, que acreditava e seguia -piamente- os preceitos e ritos do catolicismo, obrigando-os, indiretamente, a fazer o mesmo. Mas, já adoentada, não tinha mais energia para fazer o mesmo com o felizardo do Sombra, que era por natureza, um tanto quanto rebelde.

Mas, como nada é perfeito, um belo dia, ela acamada e conversando com esse neto rebelde que estava a visitá-la, lembrou-se que ele ainda não havia sido batizado. Imediatamente mandou chamar seu filho, pai de Sombra e, delicadamente, induziu-o a providenciar o batizado, o mais rapidamente possível, para livrá-lo do fogo ardente do inferno.

Arrumados, o padrinho e a madrinha, que anos depois Sombra veio a saber -por acaso- que ela era, na ocasião, uma das namoradas que o seu pai -garanhão incorrigível- mantinha, sem a menor cerimônia. Foram em direção à igreja sob os veementes protestos daquele menino, que só se vestia de calças curtas e andava com os pés no chão, descalços. Agora, fantasiado com um ridículo terninho, gravatinha borboleta, meias 3/4 e, com sapatos envernizados que lhes apertavam os espaçosos e calejados pés.

Ao chegar às portas da igreja, pressentindo alguma coisa, que não sabia explicar o que era, fugiu, correndo pela praça que ficava em frente, sendo perseguido loucamente pelo seu padrinho, que, depois de uns trinta minutos de perseguição conseguiu alcançá-lo e arrastá-lo novamente até a igreja.

O padre estava puto da vida por causa do atraso, e, também, porque sabia que a mãe do menino não estava nem aí com aquele batizado; nem o seu pai, que como já disse, era ateu. Era um padre holandês -cabelos brancos como a neve, pele vermelha como um pimentão, olhos azuis como o céu; e um olhar cheio de maldade e rancor- chamado Cornélio. Que não se perca pelo nome...

Cornélio bufava, mal escondendo a forte raiva que sentia por aquele menino, pela fuga à qual se entregara, quando se aproximou da bendita casa de Deus; julgando-o por isso, um endemoniado, que batismo nenhum daria jeito em tempo algum...Cheio de ódio, deu início a cerimônia...

Depois de dizer um caminhão de palavras incompreensíveis e, munido de uma colher de sobremesa, cheia de uma substância branca que -somente depois- Sombra soube que era sal, aproximou-se do garoto que estava visivelmente desconfiado de que alguma sacanagem o padreco urdia contra ele... Cornélio apertou-lhe as bochechas com uma das mãos e, com a outra, despejou o conteúdo da colher na goela do moleque de uma só vez, com um leve ar de vingança estampado em seu rosto. Mas, para sua enorme surpresa, ouviu o menino -imediatamente- gritar-lhe a todo pulmão: Fié da puuuta!

Mais vermelho ainda, e, quase imobilizado pelo susto que havia sofrido, levou um tempo para se refazer, mas, voltou com o seu ódio redobrado, carregando uma vasilha cheia de água, a qual foi despejada sobre o moleque, imobilizado que estava pelo seu padrinho, molhando-o da cabeça aos pés. Naquele momento, Sombra tentou desvencilhar-se para acertar um chute na canela do padreco safado e filho da puta, sem sucesso, mas -em compensação- conseguiu, graças ao bom Deus, gritar bem alto, para que todos que estivessem rezando no interior da igreja ouvissem: - Vai tomar no cuuuuu! Valorizando, com grande emoção, a palavra cu...

A "cerimônia" foi imediatamente encerrada e Sombra foi para a sua casa abrir os presentes que haviam lhe prometido, para que concordasse -sem fazer escândalo- com o tardio batismo... Como se isso fosse possível para ele.

O primeiro presente que ele abriu tinha sido dado pela madrinha, que não se sabe por que cargas d'água tinha lhe comprado, imaginem o quê? -Uma gravata... Nem é preciso dizer que a dita cuja foi, imediatamente, picada em mil pedaços...

Aimberê Engel Macedo
Enviado por Aimberê Engel Macedo em 01/05/2009
Reeditado em 02/05/2009
Código do texto: T1570076
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