EU GOSTO É DE RESPEITO

Num dia desses, pensando nessa experiência maravilhosa, que é o relacionamento entre um professor e seus alunos, eu comecei escarafunchar a memória e a me lembrar daqueles que tive, ao longo da minha vida, sobretudo, nos primeiros anos da adolescência. Tenho umas boas lembranças dos meus tempos de Liceu, como, de resto, todo mundo sempre tem boas lembranças dos tempos de estudante. Só que, onde eu estudei, no Liceu de Cachoeiro de Itapemirim, havia uns tipos hilários, meio folclóricos mesmo.

Nós tínhamos um professor de Geografia — o Professor Elias — que costumava repetir a mesma palavra, dezenas de vezes, durante as suas aulas. É um cacoete muito comum no magistério, mas houve uma ocasião em que a turma resolveu que iria contar quantas vezes a tal palavra seria dita. E ficou todo mundo marcando no caderno, enquanto ele se dava ao gosto de repetir aquele característico “através”, apenas, quarenta e cinco vezes, durante aquela aula. Há quem aprenda Geografia ou se concentre numa explicação deste jeito?

Havia também um professor de Latim — o Professor Pacheco — que entrou numa sala de 1ª Série, no primeiro dia de aula e, imaginando que se encontrava numa turma mais adiantada, resolveu verificar qual era o nível de conhecimento dos alunos, naquela disciplina, que, na verdade, eles jamais haviam estudado. Todos queimados pelo sol de Marataízes, depois de uma alentada temporada de verão, o professor foi chamando, de um a um, pelo diário de classe. Mandou a “sabatina” no povo. Perguntou sobre declinações e verbos à vontade para, no final, diante da timidez e estupefação dos calouros, concluir: “Este é o resultado! Não estudaram durante as férias!” Ora, francamente, Professor Pacheco!

Tinha o Professor Gilceu, de Matemática, que ameaçava “tirar leite da cabeça” dos alunos que não se saíssem bem na disciplina. Traduzindo para a pedagogia de então, isto significava que o desafortunado levaria uns bons cascudos pelo insucesso. Mas, no final do ano, passava as férias dando aulas particulares, para que o malsucedido fizesse a 2ª Época. E nunca cobrava nada por isto.

Minhas aulas de Francês eram com o Professor William Bermudes, que, numa ocasião, colocou-me para fora da sala porque, distraidamente, eu explodi na aula um saco vazio, que trouxera com pipocas do recreio. Acho que a minha expulsão foi mais pelo susto que ele levou, do que por eu ter feito alguma coisa realmente muito grave.

Levei três dias de “gancho”, só por conta disto (dá para acreditar?). Mas como lá em casa ninguém dava razão a menino, tive de cumprir a suspensão escondido no cemitério, que ficava numa rua atrás do Liceu. Depois de haver, com alguma habilidade, “falsificado” a assinatura da minha mãe no “ciente” que ela deveria colocar na anotação da minha caderneta. Isto é o que se pode chamar de agonia criativa!

Além desses, nós tínhamos outros professores que devem estar guardados na memória de muitas gerações, antes e depois da minha, sempre pelos mesmos motivos: o Professor Eliezer (também de Matemática), que queria, a toda força, que fôssemos estudar engenharia; o Professor Deusdete (sempre muito elegante, que lecionava Inglês e agia como se fosse um súdito da Rainha)... E, dentre tantos outros, Dona Martha, que nos ministrava as aulas de Português e que foi a musa inspiradora de todos nós.

Estou absolutamente seguro de que também devo àquela linda professora — de grata e doce memória — uma boa parte do gosto e do hábito que tenho pela leitura e pela redação. E além de tudo, duvido muito que qualquer daqueles seus alunos adolescentes, em algum momento, não tenha estado perdidamente apaixonado por ela.

Enquanto isto, do lado de fora das salas, estavam os inspetores ou bedéis, como era comum dizer-se naquele tempo. Uns mais e outros menos rigorosos com a disciplina. Muitos poderiam ser citados aqui, por suas histórias engraçadas (como o Joênio, nosso chefe de disciplina, que era um “poço de ignorância” ambulante) ou pelos seus méritos (como o Taveira, que era o maestro da nossa gloriosa banda marcial).

Mas estou me lembrando de um, em particular, que era o Ubirajara. Inicialmente chamado pelos alunos de “Bibi”, quando passou a fumar usando uma piteira — que lhe caía absolutamente ridícula — ganhou deles o jocoso apelido de “Bibi Piteira”.

Pois o “Bibi Piteira” andava empertigado, metido no seu uniforme de bedel e nos falava, numas vezes, em tom paternal; noutras, como se fosse um oficial expedindo ordens de comando. Não era um mau sujeito, mas também não nos deixava esquecer quem é que representava a autoridade, no caso.

Mas como aluno é um bichinho confiado e sem respeito, houve uma ocasião em que, no meio de uma confusão qualquer — acho que um tumulto desses na hora da entrada ou da saída — um aluno falou, lá do meio da turma:

— Peraí, “Bibi Piteira”...

O homem ficou passado. E o resto da turma também, porque o apelido era usado só mesmo entre os alunos. Com certeza, ele sabia da brincadeira, mas ninguém tinha a coragem de chamá-lo, abertamente, deste jeito.

Foi um silêncio geral. Ele olhou muito sério para a classe, ajeitou a gravata preta no colarinho da camisa cáqui e tascou:

— Bibi, não! “Seo” Bibi, está claro? Porque eu gosto é de respeito!

Neste ponto, a memória me falha; mas pela suavidade da reação, em meio aos rigores da disciplina escolar daquela época, é bem possível que o Fluminense — time da sua paixão — houvesse ganhado o jogo no dia anterior...